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Vitor Guedes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O poder paralelo no futebol imita o terror da vida

Torcida do Corinthians faz festa em treino aberto na Neo Química Arena; por gosto pessoal, a imagem usada é de festa e não de protesto violento. E não é por falta de imagens de arquivo... - Reprodução/SCCP
Torcida do Corinthians faz festa em treino aberto na Neo Química Arena; por gosto pessoal, a imagem usada é de festa e não de protesto violento. E não é por falta de imagens de arquivo... Imagem: Reprodução/SCCP

Colunista do UOL

18/08/2022 11h49Atualizada em 18/08/2022 11h49

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Brindemos o óbvio ululante, de forma clara e inegociável, em português, com todas as letras:

1. Futebol não é um mundo à parte.

2. Violência, qualquer violência, é reprovável.

3. Crime tem de ser combatido e punido. E agressão, ameaça e intimidação são inaceitáveis. E casos de polícia e Justiça.

4. Não importa se o salário é meio salário mínimo ou se trata de um bolada de sete dígitos mensais, todo trabalhador tem o direito de ter segurança para trabalhar e o seu empregador o dever de proteger sua integridade física e mental.

Parafraseando novamente Nelson Rodrigues (que onde estiver deve estar grato ao lixo maldito e escandaloso do VAR que operou o Fortaleza e classificou o Fluminense), há uma diferença abissal entre o que é certo, justo e, pois, desejável da vida como ela é.

Não é correto nem desejável que exista poder paralelo. Mas, não é de hoje, nem exclusividade de favelas cariocas, sempre vistas com olhares mais preconceituosas (tem até "gente" que comemora chacina de moradores tratando assassinato de inocentes como efeito colateral e "cancelamento de CPF"), que em regiões periféricas, a lei é diferente do centro expandido e no fabuloso mundo da classe média.

No final dos anos 90, então "foca" (jornalista iniciante) de um jornal que nem existe mais no papel, trabalhava em uma redação localizada numa quebrada, travessa de uma viela, próximas a uma favela. No local, como nos Jardins, Higienópolis, Anália Franco e Perdizes, a grande maioria era honesta e trabalhava. E, óbvio, havia uma minoria picareta.

Era comum, eu e colegas, andarmos ali a pé para ir e voltar da padoca e para se deslocar na chegada e na saída até o ponto de ônibus mais próximo. Durante um período curto, algo como 10 dias, teve um surto de pequenos assaltos no caminho. À época, celular era coisa de grã-fino e o que alguns "nóias" roubavam de nós, transeuntes, era a grana do bolso e, eventualmente, relógio e tênis para, provavelmente, trocar por droga imediatamente.

A solução? Um rapaz, muito educado, elegante trajado dentro das convenções sociais, procurou a redação e falou que a partir daquele dia, não haveria nenhum assalto no lugar. Se fosse o caso, os jornalistas poderiam andar com dinheiro na mão, sem qualquer problema, que não aconteceria absolutamente nada. E, o que aconteceu, foi que não teve mais assalto nenhum e, pois, ninguém teve motivo mais para chamar a polícia ou trazer alguma atenção do estado para o local.

Para deixar claro o que penso sobre o relato real e fidedigno (e vivido por uma dúzia de grandes colegas de profissão, muitos deles conhecidos do grande público), acho um absurdo total o poder paralelo e que uma pessoa ou grupo de pessoas decida o que pode ou não na via pública e que sua palavra seja o Estado. Mas, mesmo achando absurdo e desejando que a paz e a segurança imperasse porque assim deve ser, na prática a ordem do "dono" da quebrada resolveu o problema, pelo menos naquele período e no período próximo, imediatamente seguinte.

E o futebol com isso? A opinião pública costuma repetir que "ameaças e intimidações", violentas e veladas, não deve existir por parte de torcedores e que nenhum trabalhador trabalha melhor assim.

Vamos lá: já disse, redisse, vou "re-re-re-redizer" 818 mil vezes para não ficar nenhuma dúvida que sou ABSOLUTAMENTE contrário à intimidação, à agressão e à pressão fora dos limites civilizatórios. Mas é inegável que, a curtíssimo prazo, costuma dar resultado. O "joga por amor ou joga por terror" é bárbaro, desprezível e criminoso e, a médio e longo prazo, para efeitos esportivos, o que é menos importante que a integridade física de qualquer pessoa, nocivo. Agora, insisto e, com pesar, constato que em curtíssimo prazo, funciona.

É do ser humano. E jogador de futebol, ao contrário do que muitos pensam, é ser humano. Cara sabe que se não correr, não der o máximo e não se matar para conseguir o resultado, o bicho vai pegar para o lado dele. E o instinto de sobrevivência e de autodefesa falam alto.

Durante anos, campanhas disseram que "droga é uma droga", em vez de falar que droga não compensa, que, apesar de algum prazer ou fuga momentâneos, as consequências são muito mais graves, nefastas e perigosas e, pois, não vale o preço.

Nunca é aceitável avaliar as consequências para concordar ou não com o crime. Crime é crime e ponto final. Exclamação. E, em médio prazo, afugenta novas contratações, contamina o ambiente e impossibilita melhores resultados. Na quarta ou domingo seguintes, o que costuma acontecer, é todo o mundo dar mais do que tem para se salvar. É um por todos no paradoxal salvem-se quem puder.

Corinthians 4 x 1 Atlético-GO foi uma vitória categórica registrada, com sobras, após ficar claro para elenco corinthiano que se não viesse a vaga a vida dele seria transformada num inferno. Neste mesmo ano, Cássio, Willian (que já foi para a Inglaterra), Fagner e o presidente Duilio foram ameaçados por criminosos e nem por isso o time lidera o Brasileiro e está classificado na Libertadores. E espero que todos que intimidem, ameaçam ou agridem (sejam torcedores de que time que for, ou não sejam torcedores de ninguém porque a lógica vale para o futebol e para toda e qualquer atividade) sejam presos e punidos no rigor máximo previsto em lei. Agora, dizer que não tem influência no jogo seguinte e que é coincidência é brigar com os fatos. Ou acreditar muito em coincidência. É só não brigar com os fatos e, vai lá, pegar dos anos 1990 para cá, do Oiapoque ao Chuí, e constatar a resposta imediata no jogo seguinte, a piora na sequência e a progressiva derrota da civilização ano após ano.

O resumo é que, no futebol, como na vida, existe situações em que todo o mundo percebe a existência do poder paralelo. E o futebol, como os moradores, são vítimas. É muito fácil condenar jogador, treinador e cartola por se submeterem a lógica violenta e criminosa. Mas quem, em sua realidade, pode ser criticado por se calar e se sujeitar a mesma lógica na sua rua, na sua quebrada? Eu não cobro valentia com o pescoço alheio.

Ou o Estado, apessoal e institucional, faz o seu papel. Ou o profissional do futebol e o ser humano do dia a dia (incluindo quem vive de futebol), vai viver a vida como ela é. E segue o jogo. É triste. Mas é a vida, que nem sempre é bonita, é bonita e é bonita!

Eu sou o Vitor Guedes e tenho um nome a zelar. E zelar, claro, vem de ZL! É nóis no UOL!

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