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Vinte e Dois

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Por que é errado comparar a NBA com a recém-anunciada Superliga no futebol

14/10/2011 - LeBron James, acionista minoritário do Liverpool, visita o estádio Anfield - Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images
14/10/2011 - LeBron James, acionista minoritário do Liverpool, visita o estádio Anfield Imagem: Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images

Vitor Camargo

Colunista do UOL

21/04/2021 04h00

Quando doze dos mais tradicionais times europeus de futebol anunciaram recentemente a criação da Superliga - um novo torneio europeu que vai (supostamente) reunir 20 dos times mais ricos do continente em uma liga à parte - o mundo do futebol virou de cabeça para baixo; críticas, xingamentos, elogios e muitas confusões se seguiram ao anúncio. E, conforme todo mundo tentava racionalizar o acontecido e entender seus desdobramentos, um ponto começou a surgir com alguma frequência: as comparações entre o modelo da Superliga e o das principais ligas dos Estados Unidos, como a MLB, a NFL... e, claro, a NBA.

Mas embora a proposta aqui não seja discutir a Superliga em si, e nem se ela é uma coisa boa ou não - você encontra muitas pessoas mais capacitadas do que eu para falar do assunto aqui mesmo no UOL Esporte - ainda é importante ver de onde essas comparações vieram e, ao mesmo tempo, porque elas são superficiais e podem muitas vezes levar a uma conclusão ou raciocínio falsos.

Os paralelos entre o futebol europeu e os esportes americanos não são novos; conforme os modelos de capital aberto foram ganhando espaço no futebol, muitos times passaram a ter donos que injetam seu próprio dinheiro no clube, à semelhança do modelo americano. Nos EUA, os times são literalmente franquias, com seus donos e acionistas, geridos no modelo de empresas. Dois dos times fundadores da Superliga, inclusive, possuem donos com um pé nos esportes americanos: a família Glazer, dona do Manchester United, também é dona do atual campeão da NFL, o Tampa Bay Buccaneers; e a Fenway Sports Group, dona do time de baseball Boston Red Sox, é a dona do Liverpool. Talvez justamente por esse não ser um modelo comum no futebol que tantos desses grandes times europeus envolvidos com a Superliga possuem donos que não têm ligação local com a equipe e sua torcida, acabando ao invés disso nas mãos de empresários americanos, milionários do petróleo ou magnatas russos.

As semelhanças entre a Superliga e a NBA são até bem fáceis de enxergar. A NBA é uma liga "fechada", com times predefinidos e fixos; expansões até acontecem, mas são raras e não mudam o tecido da liga em si. Também não temos uma relação direta entre a campanha na liga e outra competição: não existe rebaixamento na NBA, e tampouco a classificação para um campeonato externo como a Champions League. Adicione a isso alguns detalhes mais técnicos (como a forma que certos contratos de televisão são assinados) e, talvez mais importante, o fato de que a NBA não é formada e gerida por uma entidade externa como uma Fifa ou Uefa - ela é formada pelos seus próprios times, de forma independente - e fica claro que existe uma similaridade no modelo de organização das duas ligas.

No entanto, as semelhanças param por aí, pois as trajetórias de ambas para chegar nesse modelo foram completamente opostas. Quando duas das três principais ligas de basquete dos Estados Unidos se fundiram em 1949 para criar a NBA que conhecemos hoje (leia meu livro Era de Gigantes para mais detalhes), o seu objetivo era simples: sobreviver. O basquete profissional nos EUA não era forte ou robusto o suficiente para existir de forma fragmentada, e diversos grandes talentos do basquete universitário não se profissionalizavam porque não valia a pena do ponto de vista financeiro se arriscar em uma empreitada tão arriscada e que pagava tão pouco. O surgimento da NBA juntou o melhor das duas ligas envolvidas, o talento individual dos jogadores da NBL e os ginásios em grandes mercados da BAA, e eventualmente gerou uma estabilidade que permitiu ao esporte profissional (e, por consequência, tudo que levava a ele) não só sobreviver, como crescer e se expandir.

Ligas rivais à NBA surgiram ao longo do tempo, é claro; a mais famosa delas foi a ABA, que surgiu em 1967 e acabou quando se fundiu com a NBA em 1976. E essa nova fusão, que estabeleceu de vez a NBA como liga dominante dos EUA no esporte, também veio por pura necessidade: com NBA e ABA dividido as receitas e interesse público, associado à expansão de gastos desenfreado conforme times e ligas competiam entre si, ambas estavam perto da falência quando por fim se uniram, salvando sua existência e talvez a existência do basquete profissional norte-americano como o conhecemos.

Ou seja, o modelo de negócios da NBA surgiu como solução para a própria sobrevivência dos seus times e da liga, o que é completamente oposto à Superliga, na qual seus fundadores são perfeitamente capazes de subsistência nas ligas nacionais e europeias que disputam no modelo tradicional; o que esses clubes buscam com a mudança é deixar de lado esse modelo visando algo que simplesmente vai dar mais dinheiro para uma elite restrita. Não que a NBA não tente constantemente aumentar suas receitas e ganhar mais dinheiro de acordo com os interesses dos seus membros, claro, mas isso é feito de forma coletiva e visando um ganho para o todo, não um maior ganho de alguns poucos times. O modelo geral da Superliga pode ser semelhante ao da NBA, mas enquanto um deles estabeleceu dessa maneira por ser o que melhor servia aos interesses do esporte em geral, outro está sendo impulsionado pelos desejos de uma minoria de servir aos seus próprios interesses.

A diferença fica ainda mais nítida olhando para outro dos pilares fundamentais da NBA: seus mecanismos de paridade. A NBA quer que todos os seus times sejam tão parelhos quanto possível e possui diversas regras que limitam as disparidades naturais entre eles. Claro que um time como o Lakers sempre vai ter uma vantagem natural em mercado, dinheiro e reconhecimento do que o Grizzlies, mas com regras de distribuição de receitas, teto salarial e um sistema de Draft que premia os piores times enquanto limita os melhores, a NBA garante que essa diferença natural tenha o menor impacto possível no seu funcionamento competitivo. Quando a liga faz mudanças para ganhar mais dinheiro, essa mudança afeta todos os times, e impulsiona a liga como um todo. É um espírito que vai completamente na direção oposta à criação da Superliga, onde a (suposta) elite dos países quer se separar do resto para aumentar sua fatia do bolo.

E, por fim, a própria forma como os times surgiram em esportes diferentes é totalmente oposta. Os times no futebol ainda são muito vistos como associações, como agremiações compostas pelos seus torcedores, porque é assim que a maioria deles surgiram; a partir de comunidades locais que se uniam para disputar jogos e torcer, e criaram uma identidade própria que está no cerne da sua existência. Talvez seja por isso que tantos torcedores se choquem ao ver seus times comprados por milionários que não têm nenhuma relação com a cultura do clube ou a comunidade onde surgiram e, ainda mais, ao ver esses clubes possivelmente abandonando as competições locais para se dedicar a uma empreitada internacional - alienando boa parte dos seus torcedores no processo - em busca de dinheiro.

Na NBA, as franquias sempre foram franquias; quando a BAA foi criada em 1946, os seus times foram todos fundados pelos empresários donos das arenas locais que queriam entrar no mercado profissional. Foi só depois que os times buscaram se conectar e formar uma base de fãs junto aos seus mercados locais - na verdade, esse foi o grande foco da NBA nos seus primeiros 15 anos de existência - e formar uma identidade própria. Foi esse tipo de iniciativa que fez com que os times surgissem em primeiro lugar, uma origem completamente oposta à da vasta maioria dos clubes tradicionais de futebol, e uma que contrasta com a transformação no modelo de negócios de forma brusca quando mais dinheiro aparece em outro lugar.

No fim do dia, existem, sim paralelos entre ligas como a NBA e a Superliga que podem nos ensinar algo sobre como a nova liga europeia deve funcionar, e como sua forma de organização maximiza seu poder comercial e leva aos altos números projetados. Mas, olhando para o contexto geral, o que aconteceu para a formação da Superliga nesses mesmos moldes é totalmente diferente do processo que compôs e ainda compõe a NBA (ou NFL, ou MLB), e muitas vezes até mesmo funcionando de forma diretamente contraditória. Estabelecer as semelhanças é natural, claro, mas tratar as duas como sendo iguais ou comparáveis - especialmente quanto à relação do processo com a torcida e o esporte como um todo - é um erro grave que só leva a mais distorções e enganos, e por isso é preciso sempre se informar antes de falar.