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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Empresários suprem lacuna na base deixada por clubes; não adianta reclamar

Jogadores do sub-15 do Flamengo em ação - Marcelo Cortes/Flamengo
Jogadores do sub-15 do Flamengo em ação Imagem: Marcelo Cortes/Flamengo

04/06/2021 04h00

Já são 15 meses que vivemos diariamente esta pandemia mundial. No futebol, campeonatos foram retomados, títulos foram decididos, e uma nova temporada já está em andamento. Porém, um problema segue sem ser solucionado, ou parte dele segue sem um desfecho satisfatório: jovens das categorias de base de clubes estão sem amparo.

Com centros de treinamentos fechados, não há alimentação, treino, estudo e acomodação, principalmente para os jovens de até 16 anos. Assim, a figura dos empresários tem sido primordial para estes garotos e suas famílias.

Os times enfrentam a crise financeira agravada pelo surto do coronavírus. Se os relatos de dificuldades viraram rotina em times da elite do Brasileirão, imagine como está a situação dos chamados times pequenos, que tanto revelam jovens promissores. Há casos de clubes da Série A do Brasileirão que demitiram funcionários por conta da crise, iniciando os cortes pelos profissionais da base.

Tinga (em pé, na ponta direita) ao lado dos jogadores da base do Grêmio, em 1995 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tinga (em pé, na ponta direita) ao lado dos jogadores da base do Grêmio, em 1995
Imagem: Arquivo pessoal

A frase "o futebol brasileiro hoje está nas mãos dos empresários" virou rotina. Mas não vejo como uma forma pejorativa ou ilegítima. Na verdade, o futebol brasileiro foi empurrado para as mãos destes agentes desde a Lei Pelé, criada no fim dos anos 1990 para dar mais liberdade aos jogadores na gestão das suas carreiras.

Mas é quase impossível um atleta administrar a sua carreira dentro e fora de campo de forma satisfatória. Então, foi aberto o mercado para o surgimento de mais empresários de futebol. Se o futebol brasileiro hoje está nas mãos dos empresários, os clubes ajudaram, e muito, para este desfecho. Por isso, é preciso acabar com essa muleta que os dirigentes de equipes usam como desculpas quando deixaram escapar um potencial craque.

Quando um jovem deixa uma pequena cidade do interior do Nordeste para atuar na base de um clube do Sul ou do Sudeste, a figura do empresário é essencial neste processo, pois é ele que oferece ajuda de custos para passagens, estadia, alimentação, chuteiras e até empregos aos pais destes meninos. Não é descaso dos clubes, e sim a realidade que passam pela crise econômica.

"A relação entre jogadores e empresários é muito mais comercial do que antigamente. Hoje, o empresário tem que dar moradia e assistência até para os pais e irmãos. Na pandemia, notei toda essa diferença porque os jogadores que são de outros Estados ou cidades não tiveram o apoio financeiro porque os clubes também estão passando por dificuldades. Alguns clubes mandaram estes jogadores de volta para suas residências até que a pandemia esteja controlada, tanto que boa parte dos jogadores abaixo de 16 anos ainda está em casa.

Essa relação está muito latente. Atualmente, eu pago entre 25 e 30 apartamentos que estão vazios, pois as imobiliárias não quiseram fazer acordos. Tenho que manter [os imóveis] porque em algum momento estes jogadores irão retornar, e eles não irão morar debaixo de pontes. Ainda assim, alguns ficaram em Porto Alegre, São Paulo ou Rio de Janeiro. Com isso, a minha empresa ainda tem que dar ajuda alimentar.

Mas sempre houve essa ajuda [financeira], seja com chuteiras ou roupas de frio, principalmente quando são atletas que são do Norte e Nordeste. As parceiras com os clubes só surgem quando certos pais e certos jogadores que completam 18 anos se vendem para outro empresário aproveitador, que paga uma quantia alta [para encerrar a antiga relação]. Pseudos empresários de outros ramos, que não estão dando certo, migram para o futebol e acabam destruindo carreiras de vários jogadores. Estes atletas acabam caindo no ostracismo pelas carreiras que foram mal conduzidas ou por pais que acham que podem gerenciar uma carreira pelo tamanho do atleta".

Isto foi o que me relatou o empresário Jorge Machado, com vasta influência e experiência no futebol.

Por eu ter sido jogador profissional por quase duas décadas e ter atuado nos dois principais clubes do Rio Grande do Sul, sempre sou procurado para conseguir testes nas bases de Grêmio e Internacional. Mas como não trabalho como agente de atletas, fico de mãos atadas e triste porque não existem mais as tradicionais peneiras em grandes equipes. Eram oportunidades de ouro para guris de favelas e comunidades humildes.

Tinga (em pé, segundo da dir. à esq.) com colegas da base do Grêmio, em 1995 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tinga (em pé, segundo da dir. à esq.) com colegas da base do Grêmio, em 1995
Imagem: Arquivo pessoal

Vejo as peneiras como uma forma de socialização, de oportunidades. Fui reprovado três vezes em testes que realizei no Inter. Só consegui a minha primeira chance no Grêmio. Mesmo quando fui rejeitado pelo Colorado, mantive as minhas esperanças, pois o sonho de viver um dia de futebol e poder ajudar a minha família me manteve focado.

Como cresci num bairro humilde de Porto Alegre, a Restinga, as peneiras foram cruciais para eu seguir dedicado, me afastando das drogas e de outros problemas rotineiros em comunidades carentes. Nunca precisei de empresário para fazer testes, só aparecia com o meu RG. Há milhares de garotos buscando oportunidades, mas não há mais espaço que as ofereça.

Há ainda outro fator agravante que já havia mencionado em outra coluna. Hoje em dia, até os dirigentes de base estão focados no sucesso pessoal para assumir uma função na CBF ou em clubes do eixo Rio-São Paulo. Não há uma preocupação com as vidas dos meninos que estão em formação, mas, sim, na performance. O futebol é número, é business. Essa rotatividade de dirigentes gera ainda mais desconfiança na cabeça destes jovens. Assim, essa lacuna é preenchida pelos empresários, que até fazem o papel de família.

"A relação empresário/atleta transcende o prazo contratual de prestação de serviço entre as partes, ela é familiar. O empresário e interfere nos problemas pessoais, familiares e profissionais do jogador. Esse contexto faz com que o agente tenha importância em conselhos prestados ao atleta em diversas situações da sua carreira. E um perfil no qual eu me enquadro.

Vejo o agente como um meio, a pessoa que dá as ferramentas para tomada de decisões fora campo. Muitas vezes, decisões impensadas podem trazerem prejuízos na carreira do atleta. Se o empresário tratar o 'dinheiro' como consequência de um trabalho, com naturalidade, o sucesso é inevitável. Já, se colocar o dinheiro na frente do trabalho, corre o risco de ser traído pela própria ganância", me disse o Vinicius Prates, que agencia atualmente a carreira do Paolo Guerrero, entre outros atletas.

Quero deixar claro que não tenho participação na carreira de nenhum jogador. Tenho dois filhos que estão buscando oportunidades no futebol. O Davis está com 18 anos e atua como profissional no São José de Porto Alegre, e o Daniel, de 14 anos, que joga em escolinhas. Não me sinto apto para gerir as suas carreiras nem tenho pretensão, pois em algum momento o lado afetivo pode interferir em uma eventual crítica a eles.

É preciso ter expertise para conduzir a carreira de um atleta. Nem todos terão o mesmo sucesso do pai do Neymar, que alcança a maior transação do futebol mundial.

Trouxe essa reflexão sobre o papel dos empresários porque me chamou atenção o grande aumento desta classe no mercado do futebol. Atualmente, segundo dados da CBF, há 1.094 agentes registrados oficialmente — sem contar os adjacentes destes profissionais e os familiares dos atletas que cuidam das suas carreiras, uma vez que, querendo ou não, há inúmeras pessoas envolvidas no futebol que não estão relacionadas aos times. Essa é a realidade vigente do nosso futebol.

*Com colaboração de Augusto Zaupa