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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Egoísmo da Superliga é reflexo da sociedade

Torcedores ingleses protestam contra a criação da Superliga em Londres - REUTERS/Kevin Coombs
Torcedores ingleses protestam contra a criação da Superliga em Londres Imagem: REUTERS/Kevin Coombs

22/04/2021 04h00

Dediquei mais da metade da minha ao futebol de alto rendimento. Vejo que qualquer proibição num esporte, que deveria servir para inclusão, foge dos seus propósitos. Somado ao fato que o futebol tem ao seu favor o fato de ser a modalidade mais popular do mundo - ou uma delas.

Ao ver o anúncio da criação de uma Superliga com as principais potências europeias, fica cada vez mais evidente que o futebol se tornou egoísta e elitista.

Logo de cara, achei que esta Superliga não iria sair do papel, tamanha a repercussão negativa que trouxe à tona inúmeras fatores que têm nos incomodado. O futebol tomou um caminho cada vez menos popular. Por tanto, em pouco menos de 48 horas depois do anúncio oficial do seu nascimento, este torneio presunçoso já foi suspenso com o argumento que o "projeto será remodelado".

Mais do que óbvio que o futebol é business, principalmente as ligas europeias que arrecadam bilhões de euros, e que há a necessidade de reformulação para que os clubes fiquem com uma porcentagem maior deste bolo, e não apenas algumas fatias. Porém, é preciso ter cautela.

O futebol é única 'empresa' na qual os especialistas não fazem parte dos grupos gestores, administradores e conselheiros dos clubes. Quem cria e organiza as competições não consegue enxerga a essência do futebol. Mas numa sociedade egoísta, que pensa cada vez mais apenas no seu umbigo, é natural que o futebol siga essa toada.

 Camiseta que jogadores do Brighton usaram no aquecimento antes de jogo contra o Chelsea: "Futebol é para os torcedores", em protesto contra a Superliga - Neil Hall - Pool/Getty Images - Neil Hall - Pool/Getty Images
Jogadores do Brighton protestaram contra a Superliga no aquecimento antes de jogo contra o Chelsea: "Futebol é para os torcedores"
Imagem: Neil Hall - Pool/Getty Images

Já faz algum tempo que o futebol foi roubado dos jogadores, pois eles não têm mais liberdade de se expressarem entre as quatro linhas com o excesso de táticas e nomenclaturas neste futebol moderno. Agora, os prejudicados são os torcedores, que também não foram consultados no processo de gestação desta liga paralela. Vide que várias torcidas destes clubes de ponta se revoltaram nestes últimos dias.

Me dá esperanças ao ver esta onda de protestos e declarações de jogadores, treinadores, dirigentes e ex-atletas contra a Superliga. Isto demonstra que são contra o elitismo. Por mais que potências como Manchester United, Manchester City, Milan, Chelsea, Tottenham, entre outros, tenham proprietários, a grande maioria dos demais times não possui donos. Por isso, não adianta empurrar regras goela abaixo, porque os torcedores irão se revoltar. Ainda existe visão humana e coletiva.

Neste mesmo contexto vejo o quanto é perigoso quando ouço discussões a favor do fim dos Estaduais no Brasil. Se nem todas as 20 equipes da elite do Campeonato Brasileiro possuem condições de disputar uma Série A, imagine os demais times.

Se não prestarmos atenção, também irão se empenhar para aplicar esta elitização no nosso futebol, como tentaram com o Clube dos 13, criado na década de 80. Este grupo perdurou por muito tempo, o que fez os pequenos se tornarem ainda menores. O abismo só aumentou e poderia ter sido ainda maior se clubes da elite tivessem mais responsabilidade em suas finanças.

E não aceito o argumento que veremos mais clássicos na criação de superligas. Quanto mais jogos, menos interesse. Jogos grandes não são para acontecer todo o final de semana. Este excesso de clássicos gera desinteresse e descrédito de quem banca o futebol, que são os torcedores. Ninguém quer assistir Real Madrid x Barcelona, Milan x Internazionale, Manchester City x United ou Gre-Nal todos os domingos.

Os torcedores querem que estes clássicos aconteçam desde que o seu clube seja merecedor, não adianta impor isto. Esta obrigação vai ter impacto direto nas ligas nacionais. Já imaginou um time com menor poder financeiro ser campeão nacional, como Leicester, Napoli ou Valencia, ser campeão em seu país e não disputar um torneio internacional na temporada seguinte? Há o grande risco de até enfraquecer os campeonatos locais.

Ainda há ameaça de fechar ainda mais o mercado do futebol para os jogadores, pois são pouquíssimos que conseguem se tornar profissional e viver do esporte. O principal sonho de toda criança que joga bola em seu bairro ou escolinha, independentemente da sua nacionalidade, é disputar uma Champions League e uma Copa do Mundo. É inadmissível ouvir ameaças de exclusão de atletas destes torneios se disputarem esta Superliga.

Claro, isto tudo pode ser encarado como um jogo de cena, uma forma de pressionar a Uefa para que ofereça mais vantagens (dinheiro) a estes superclubes que bancam salários estratosféricos.

Patrocinadora da Liga dos Campeões, Heineken publicou uma provocação à Superliga - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Patrocinadora da Liga dos Campeões, Heineken publicou uma provocação à Superliga
Imagem: Reprodução/Instagram

Mas não aceito o argumento que somente esta pandemia pegou de jeito os cofres destes times, visto que há anos estas equipes contratam jogadores por, no mínimo, de 50 milhões de euros. Onde está a crise quando se paga quase R$ 1 bilhão para tirar um atleta de outro time?

Em um mundo que passa pela pior crise mundial dos últimos anos e que o egoísmo é latente, não seria no futebol que iríamos ver soluções coletivas. Ele é apenas parte da bolha da nossa sociedade.

Se hoje testemunhamos trabalhadores impedidos de saírem de casa para buscar o seu sustento, cidadãos sem acesso à saúde, pessoas enriquecendo numa pandemia... Não seria no futebol que encontraríamos a solução.

O futebol se tornou reflexo da sociedade, ele executado e decidido por seres humanos.

*Com colaboração de Augusto Zaupa

Algumas opiniões contrárias à Superliga

"Não é esporte quando a relação entre o esforço e o sucesso, o esforço e a recompensa não existe. Então não é esporte. Não é esporte quando o sucesso já está garantido. Não é esporte se não tem importância se você perder."
Pep Guardiola, treinador do Manchester City

"As pessoas não estão contentes e posso compreender, mas não tenho muito mais a dizer, porque não fomos consultados durante o processo, nem os jogadores nem eu."
Jürgen Klopp, treinador do Liverpool

"Nós não gostamos e não queremos que aconteça. Esta é a nossa posição coletiva. Nosso compromisso com este clube de futebol e com seus torcedores é absoluto e incondicional."
Alisson, goleiro do Liverpool

"A Superliga estava sendo tramada há anos por pessoas como Florentino Pérez e Andrea Agnelli. Poderia ser falada conosco, estávamos dispostos a ajudar. Há alguns dias, recebemos uma proposta interessante e disseram que não era preciso falar nada. Isso tem a ver com a avareza, o egoísmo e o narcisismo de alguns."
Aleksander Ceferin, presidente da Uefa

"O futebol pertence aos torcedores. Hoje mais do que nunca."
Gerard Piqué, zagueiro do Barcelona

"Estou feliz que a voz unida dos torcedores do futebol foi ouvida e atendida. Agora e muito importante que nós usemos este momento para garantir a saúde futura do jogo em todos os níveis. Como presidente da FA, estou comprometido a fazer minha parte neste trabalho."
Príncipe William, presidente da Associação de Futebol Inglesa

"O projeto não teria se concretizado sem o apoio dos torcedores. Durante 48 horas, vocês deixaram claro que não queriam que ele acontecesse. Nós ouvimos vocês. Eu ouvi vocês."
John W. Henry, proprietário do Liverpool