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OPINIÃO

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Acompanhamento psicológico desde a base é mais do que necessário

Ex-Athletico, atacante Morro García foi encontrado morto na Argentina - GettyImages
Ex-Athletico, atacante Morro García foi encontrado morto na Argentina Imagem: GettyImages

12/02/2021 04h00

No último fim de semana, eu me deparei com uma notícia que pode ter passado batido para muitos, mas não para mim e outros tantos que viveram ou ainda vivem do futebol. O atacante Morro García foi encontrado morto em sua casa na cidade de Mendoza, na Argentina. A autópsia e a perícia constataram que não houve intervenção de terceiros, ou seja, ele cometeu suicídio.

Já escrevi aqui neste espaço que a depressão é uma grande ameaça pós-carreira no futebol, mencionando casos como os de Nilmar e Pedrinho. Desta vez, no entanto, vejo a necessidade de alertar que é primordial que o trabalho de acompanhamento psicológico aos atletas já ocorra desde a base, ou seja, a partir dos 14 anos, ou até antes.

Com passagem pelo Athletico-PR, Morro era jovem, recém havia completado 30 anos no início de fevereiro. De acordo com os exames, o atleta estava morto desde quinta-feira (4), mas o corpo só foi encontrado no sábado. Ao lado do corpo do jogador uruguaio, que foi encontrado com um tiro na cabeça, havia uma arma.

Morro havia sido afastado do time do Godoy Cruz após ser diagnosticado com depressão e estava sendo acompanhado por psicólogos e por um psiquiatra. Familiares dele afirmaram que o presidente do clube argentino declarou que Morro "era um líder negativo", o que não ajudou em nada, pelo contrário.

Godoy Cruz - Marcelo Endelli/Getty Images - Marcelo Endelli/Getty Images
Morro García comemora gol do Godoy Cruz pelo Campeonato Argentino
Imagem: Marcelo Endelli/Getty Images

As cobranças surgem desde cedo. Tanto que um grupo de jogadores do futebol uruguaio fez um apelo pedindo menos pressão aos jogadores. Para eles, insultos e tormentos após as derrotas devem ser minimizados para evitar situações parecidas. Alguns irão falar: "se não aguenta a pressão, nem deveria jogar". Agora, se um médico não tiver sucesso numa cirurgia, a família do paciente tem o direito de xingá-lo e de hostilizá-lo no seu ambiente de trabalho? Já havia proposto essa reflexão em outra ocasião.

E esta pressão é cada vez mais precoce. O futebol não é mais encarado como brincadeira por garotos de 11 ou 12 anos. A bola é o futuro deles e da família. Tanto que saem de casa cada vez mais cedo e atravessam o país para morar em alojamentos de clubes localizados a milhares de quilômetros da sua cidade natal, onde está o seu alicerce, que é a família.

Nos últimos anos, os clubes estão transferindo a família toda para a cidade onde estão sediados. Isso coloca ainda mais responsabilidade nos ombros destas crianças, pois os pais e irmãos deixam tudo para trás. É extremamente perigoso sobrecarregar estes meninos, visto que, se não vingar, será uma decepção em massa.

Não deveria ser permitido uma criança desta idade, que tem uma estrutura familiar, deixar o seu teto tão cedo. Os clubes deveriam monitorá-los em suas cidades até os 14, 15 anos. Isso com acompanhamento de um psicólogo para conduzir o lado emocional. Ainda não há um modelo ideal, mas poderia, sim, retardar este sistema. É natural que vão falar que virá um outro clube e 'pescará' este garoto. Mas vamos voltar ao mesmo ponto, que os times estão preocupados apenas em formar o atleta e não o cidadão.

O meu processo de formação foi diferente porque vivia em Porto Alegre, não precisei sair de casa. Fazia o percurso de onde eu morava na Restinga até o estádio Olímpico em 40 minutos. Depois de ser recusado em vários testes, cheguei ao Grêmio aos 15 anos. No ano seguinte, o Grêmio me levou para morar no alojamento. Fui criado apenas pela minha mãe, mesmo assim, já tinha uma boa base, com valores que carrego até hoje.

Além disso, naquela época, os dirigentes eram torcedores apaixonados pelos clubes e tinham um tremendo prazer em ver aqueles jovens se tornarem atletas e cidadãos no seu time de coração. Não eram dirigentes de mercado, como ocorre na atualidade. Tenho contato até hoje com os meus dirigentes daquele momento e os chamo de padrinho, ou até mesmo de pai. Eles tinham muito entusiasmo em cuidar de nós.

Não eram profissionais de mercado que queriam usar o Grêmio apenas como vitrine para depois se transferir para o Palmeiras, Corinthians ou outra equipe do eixo Rio-São Paulo. Hoje em dia, até os dirigentes da base estão focados no sucesso pessoal para assumir uma função na CBF. Não há uma preocupação com a vida do guri da base, mas, sim, na performance, pois o futebol é número, é business. Acredito que há espaço para humanizar um pouco mais este processo.

Sempre realcei o quanto é importante o jogador se preparar emocionalmente antes de se aposentar para não sofrer de depressão pós-carreira. A minha geração tinha essa preocupação a partir dos 30 anos, mas vejo que esta preparação emocional tem começado mais cedo por toda essa situação de perda de identidade de quem "são os seus", ou seja, os que o zelam e querem o seu sucesso, independentemente de se tornar profissional ou não.

Há ainda o risco de, quando este jovem é puxado para o time principal, com 17 ou 18 anos, já o encararem como pronto, e toda a estrutura e cuidado que o cercavam são deixados de lado. Aí está a brecha para que esta promessa acabe perdendo o foco e caia numa depressão. Sem mencionar os que passam anos na base e nem sequer prosperam.

O auxílio de profissionais da saúde psicológica ainda é visto como perfumaria, como se fosse uma bobagem desnecessária. Mas alguns clubes da elite do futebol brasileiro despertaram e têm investido neste apoio emocional, mas em muitos casos, um profissional da área supervisiona mais de 80 atletas. Em determinadas ocasiões, o acompanhamento é em grupo, o que não ajuda em nada.

Porém, me questiono se estes psicólogos do esporte sabem o que é dormir numa sexta-feira ganhando R$ 800 por mês e na segunda-feira estar numa sala rodeado por dirigentes e empresários para renovar o contrato para ganhar R$ 40 mil depois de ter se destacado na rodada do fim de semana. O cara acha que vai ganhar o mundo, que aquilo será só o início, porque muita coisa (dinheiro e fama) ainda está por vir. De repente, será o máximo que conseguirá ao longo da carreira.

Às vezes, o próprio jogador é mais rodado e experiente que o próprio psicólogo que o acompanha. Recordo quando atuava com o volante Edinho, nos tempos de Internacional, ele brincava que, quando era chamado pela psicóloga para conversar, era ela que chorava na sessão de terapia porque ele tinha uma história repleta de percalços.

Conversando com o Marcelo Piccione, psicólogo que acompanha os Meninos da Vila, ele me disse que a presença do profissional da área nas categorias de base do Santos é mais estável e tem sido encarada com mais naturalidade. Já entre os profissionais, a presença é mais restrita e irregular, embora a discussão sobre este tipo de atuação tenha aumentado.

Já a Fernanda Faggiani, que atua na base do Grêmio, disse que o trabalho realizado com os guris gremistas é para "se estender na vida, podendo ser empregado na escola ou em outro ambiente fora do futebol".

"Fazemos uma psicoeducação dos atletas desde cedo para ajudá-los a conhecer os seus pensamentos, emoções e o comportamento que surge diante de uma emoção. Entender o que acontece no corpo quando há uma ansiedade. Ações durante um jogo ou treino podem estar relacionadas com emoções que não foram trabalhadas. Por isso, às vezes, o comportamento não é o esperado, o mais adequado. Trabalhamos para que eles entendam por que estão concentrados, as variáveis que podem ocasionar a pressão e vão influenciar diretamente na performance, tanto de forma positiva como negativa."

Particularmente, nunca tive acompanhamento psicológico ao longo de duas décadas como profissional. Trabalhei com vários jogadores que tiveram mudanças de comportamento abruptas, que tu falas: "esse cara nunca fez isso, o que está ocorrendo?"

Devido ao tabu, não existia essa palavra depressão nos vestiários ou nas concentrações. Ninguém se encorajava a dizer que estava fraco, e nós, como homens e jogadores de futebol, não queremos assumir isso. Mas há sinais que entregam o problema. Geralmente, o cara começa a gastar muito ou se afunda na bebida, o que é mais comum.

Atuei ao lado de vários jogadores que deram estes sinais, porque eles eram responsáveis por bancar a família com 30 pessoas ou mais. Sempre disse: quando eu caía no gramado machucado, caíam 50 comigo, porque eu sustentava 50 pessoas. Tudo isso afeta a cabeça do atleta.

Dominamos toda a parte técnica e tática do futebol, mas ainda somos carentes na gestão emocional e precisamos valorizar cada vez mais os profissionais desta área que atuam nos clubes.

* Com colaboração de Augusto Zaupa