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Independentemente da cor, todas as vidas importam

João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por seguranças em unidade do Carrefour em Porto Alegre - Arquivo pessoal
João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por seguranças em unidade do Carrefour em Porto Alegre Imagem: Arquivo pessoal

26/11/2020 04h00

Virou rotina. Nos últimos anos, sou procurado pela mídia às vésperas do dia 20 de novembro, data marcada pelo Dia da Consciência Negra, para comentar sobre racismo e inclusão. Nunca aceito. Não é porque esses temas não sejam importantes, mas sim pela forma como ainda continuam sendo tratados.

Há cerca de dois meses, escrevi aqui neste espaço no UOL que o negro pode falar muito mais do que apenas sobre racismo. Particularmente, eu prefiro falar sobre empreendedorismo, atividade a qual me dedico hoje. Naquela ocasião, queriam me ouvir sobre os atos de injuria que o Neymar sofreu durante jogo do Campeonato Francês.

Expus o meu incômodo ao escrever que nós negros temos autoridade e conhecimento para debater diversos assuntos. Sim, é de suma importância termos espaço para abordar este tema triste que é o racismo, mas o que realmente me alegra é quando presencio cidadãos negros sendo convidados para debater temas ligados à medicina, matemática, política, direito, ciência ou culinária, entre outras áreas.

Este looping de vermos os negros na mídia apenas quando ocorrem atos de racismo me faz lembrar as famosas entrevistas no final das partidas de futebol. Debocham dos jogadores ao afirmarem que sempre respondem da mesma maneira. Mas será que é isso ou o problema é que sempre fazem as mesmas perguntas?

No entanto, não poderia me calar depois do fatídico caso que ocorreu em Porto Alegre, na última quinta-feira (19), quando o soldador João Alberto Silveira Freitas, o Beto, foi morto ao ser espancado por dois seguranças em uma unidade do supermercado Carrefour. Como qualquer cidadão em sã consciência, fiquei chocado, independentemente da cor da pele.

É impactante ver as cenas de dois homens agredindo de forma covarde uma pessoa que seria cliente da loja. Como seres humanos, nós já estamos derrotados há um bom tempo porque perdemos o principal, que é o amor e o respeito ao próximo.

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Câmera de monitoramento captou momento em que Beto Freitas foi espancado em estacionamento
Imagem: Reprodução/Twitter

Como negro, afirmo que TODAS AS VIDAS IMPORTAM. Não, eu não estou tapando o sol com a peneira, não estou repudiando a existência do racismo na nossa sociedade. Respeito e sei da importância das manifestações 'Vidas Negras Importam', ainda mais no país como o nosso que sofre, e muito, com a vulnerabilidade social.

Mas como posso ter pesos diferentes numa balança levando em conta a cor da pele?

A minha própria família é uma mistura. Eu sou negro, minha esposa é branca e os meus filhos são pardos. Dentro da minha casa, todas as vidas importam de uma forma igual, não sou mais importante do que eles por causa da cor da minha pele. Seria extremamente injusto e desumano afirmar isso.

É lógico que existe racismo do Brasil, não tem como negar. Somos um país que tem de tudo, com uma população de quase 210 milhões de habitantes e com uma extensão territorial quase continental. Temos brancos, negros, asiáticos, mestiços, pardos, cafuzos, mulheres, homens, gays...

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Manifestação no MASP, em São Paulo, contra o assassinato de João Alberto em Porto Alegre.
Imagem: Paulo Pinto/FotosPublicas

Fico assustado quando testemunho alguém dizer que todas as pessoas de pele branca são racistas. Esta é a conotação que enxergo quando ouço alguém dizer que o Brasil é um país racista. Não, não tem como afirmar que numa nação com duas centenas de milhões de pessoas todos são preconceituosos. Temos de tudo no nosso país, e é esta nossa miscigenação que o torna bonito aos olhos de quem é de fora. O mundo todo ama o nosso povo por causa desta diversidade. Este é o maior charme que temos e nós mesmos não admiramos o nosso país.

Tenho orgulho da minha cor, do meu cabelo rastafári, de falar em qualquer canto do mundo que vim da Restinga — bairro humilde de Porto Alegre que levo até hoje em meu nome. Desta forma, não me sinto representado nestas manifestações em Porto Alegre, com depredações de instalações do Carrefour. Este tipo de atitude faz perder a razão. A morte do Beto Freitas tem que ser responsabilizada por uma meia dúzia de pessoas, incluindo alguns que ficaram só vendo e instigando o espancamento, e não uma equipe inteira de um supermercado.

Não posso concluir que o responsável pelo Carrefour seja racista, que seja conivente àquele ato de barbárie, porque eu também tenho empresa e funcionários. É certo eu ser acusado de racismo se um cliente que for a minha agência de turismo ser espancado, ou morto, por um colaborador da minha empresa? Pelo contrário, eu o demitiria e ajudaria as autoridades responsáveis a puni-lo da forma correta.

Para sabermos se o Carrefour é racista ou não, temos que questionar os funcionários e clientes como são tratados diariamente dentro das instalações dos supermercados. Depois, então podemos tomar a atitude de boicotar a empresa.

Julgo que o departamento de recursos humanos de uma empresa busca sempre no processo seletivo as melhores opções, mas não dominamos as reações de todas as pessoas. Cada um age de uma forma quando é agredido, como o caso do segurança no supermercado de Porto Alegre, mas, claro, não justifica a atitude que foi tomada e, lógico, estes funcionários da empresa de segurança terceirizada precisam ser punidos da forma mais rigorosa possível. Então, não consigo acreditar que o Carrefour autorize cenas de violência em casos como este.

Ainda me espanta ver figuras ligadas à política convocando a população para ir às unidades do Carrefour para tumultuar. Ironicamente, estes mesmos personagens pediram isolamento social neste momento de pandemia. Não é disto que estamos precisando, de brigas já estamos cheios. Precisamos mais de bom senso e de verdadeiras punições.

A questão do racismo não irá se resolver com uma indignação pontual. É necessário ter educação e oportunidade. O Carrefour chegou a anunciar medidas para combater o racismo, como a criação de um fundo de R$ 25 milhões para promover a inclusão racial. A empresa afirmou também que doará os lucros obtidos com as vendas em todas as lojas do país que ocorreram na sexta-feira (20), Dia da Consciência Negra.

Agora, gostaria de entender uma coisa: como é que se combate o racismo com dinheiro? Quais serão as ações adotadas? Para onde vai esta quantia e como será aplicado?

Confesso que estou curioso e ansioso para saber como este trabalho será implementado.

*Com colaboração de Augusto Zaupa