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Futebol feminino é o diamante a ser lapidado no Brasil

Seleção brasileira feminina realiza período de treinos em Portimão, em Portugal - Laura Zago/CBF
Seleção brasileira feminina realiza período de treinos em Portimão, em Portugal Imagem: Laura Zago/CBF

05/11/2020 04h00

Nos últimos anos, o futebol feminino tem tido um crescimento descomunal, tanto em relação à prática quanto ao consumo do esporte. As mulheres já representaram 41% da audiência do futebol na televisão brasileira. De acordo com dados do Ibope, entre 2014 e 2018, houve aumento de 30% no tempo médio consumido do futebol por mulheres. Somado a isso, houve salto de 51% no tempo médio consumido jogos femininos pela população em geral.

Desta forma, de todas as modalidades, o futebol feminino é o grande diamante entre os esportes no Brasil a ser explorado e lapidado. É um esporte barato, que engloba toda a sociedade, sendo pobre e o rico. Não é preciso ter um equipamento caro ou ser sócio de um clube para praticá-lo. Só com um brinquedo, que é a bola, brincam 22 ao mesmo tempo.

O futebol feminino é o nosso tesouro, tem grande potencial de crescimento. Podemos realizar tudo o que almejamos e não conseguimos entre os homens, principalmente em relação à gestão, organização e engajamento na modalidade, porque não há um vício. Também não podemos deixar de lado dois fatos importantíssimos: a manutenção de nossas craques no Brasil e a educação do torcedor, pois ainda não há uma relação com as torcidas organizadas.

Entra ano e sai ano, sempre ouvimos e debatemos os mesmos problemas ligados ao futebol masculino e não acredito que isso irá mudar. Aqueles sonhos utópicos que temos em ver aqui no Brasil a mesma organização apresentada numa Liga dos Campeões da Europa ou na Premier League podem sim ser alcançados entre as mulheres. Elas não estão acostumadas nem acomodadas com a mesma rotina. Pelo contrário, é a paixão que as move pelo esporte. Elas estão engajadas para fazer a modalidade crescer e, enfim, vingar no país. As próprias atletas estão dispostas e lutam diariamente para que o esporte cresça.

Me recordo que durante a Copa do Mundo feminina, realizada em 2019, a seleção brasileira enfrentou as francesas pelas oitavas de final. Naquele mesmo dia e horário, ocorria na Arena do Grêmio o jogo entre Argentina e Qatar, pela Copa América. No início, fiquei zapeando os canais para acompanhar as duas partidas. Mesmo com o Lionel Messi, melhor jogador do mundo na atualidade, preferi dar atenção à partida das meninas porque a qualidade e a velocidade era superior à de Porto Alegre.

Este salto na qualidade do futebol feminino e o espaço concedido às meninas desperta o público em geral. Vale recordar que em maio, durante a paralisação dos campeonatos devido à pandemia da Covid-19, a Rede Globo reprisou inúmeros jogos memoráveis, entre eles Brasil x EUA, que definiu a medalha de ouro do futebol feminino no Pan de 2007. A emissora liderou a audiência com 11 pontos de média.

Marta e Cristiane na decisão do futebol feminino no Pan Rio 2007 - Joel Auerbach/Getty Images - Joel Auerbach/Getty Images
Marta e Cristiane na decisão do futebol feminino no Pan Rio 2007
Imagem: Joel Auerbach/Getty Images

Esse crescimento exponencial ficou ainda mais evidente durante a Copa do Mundo da França em 2019, uma vez que 1,12 bilhão de pessoas assistiram ao torneio, o que significou aumento de 30% no alcance em relação à edição de 2015, realizada no Canadá.

Se a audiência cresce, o consumo também explode. A Nike divulgou em 2019 que as vendas das camisetas da seleção feminina dos Estados Unidos, que ficaram com o título da Copa, bateram o recorde histórico de vendas, superando times masculinos e femininos. A fabricante de material esportivo patrocinou 14 das 24 equipes naquele Mundial. A forte presença da multinacional elevou as receitas de atacado no segmento feminino em 11%.

Se eu fosse um investidor no futebol, optaria pelo futebol feminino.

Em termos de marketing, o futebol feminino tem muito mais possibilidades de ser explorado do que o masculino. Entre os homens, ainda há muito a ligação na venda de camisetas, chuteiras e cerveja, porque é uma bebida muito ligada aos torcedores brasileiros. Mas quando falamos das mulheres, ampliamos para vários outros segmentos, como a moda (diversidade do vestuário feminino), beleza (produtos ligados aos cabelos, pele, maquiagem...), calçados, entre outros.

Em meados de setembro, o Palmeiras e Puma anunciaram um acordo para patrocinar as 23 jogadoras do time de futebol feminino. A fornecedora de material esportivo irá patrocinar as atletas, desde o uso de chuteiras à participação em ações e posicionamentos da parceira. O acerto é considerado inédito.

A engrenagem gira com facilidade com a visibilidade da modalidade, uma vez que mais patrocinadores exploram o capital econômico e social das jogadoras. Com isso, há aumento do público nos estádios, aumento nos valores dos prêmios nas competições — chegando a equiparar aos homens em alguns casos —, camisas com patrocinadores próprios, contratos milionários com grandes, aumento no número de jogadoras profissionais, venda de direitos de transmissão... Ou seja, há um mar de opções a ser explorado.

Rogério Caboclo encontra com a técnica Pia Sundhage e comissão técnica da seleção feminina - Thais Magalhães/CBF - Thais Magalhães/CBF
Rogério Caboclo, presidente da CBF, com a técnica Pia Sundhage e as coordenadoras Duda Luizelli e Aline Pellegrino na Granja Comary
Imagem: Thais Magalhães/CBF

Mulheres no comando

A CBF, enfim, passou o comando do futebol feminino para as mãos delas. Além da contratação da técnica sueca Pia Sundhage para a seleção brasileira principal e a chegada de Aline Pellegrino para coordenar as competições femininas, a entidade colocou Duda Luizelli na coordenação das seleções femininas.

Somado a isso, Sundhage tem como auxiliares Lilie Persson e Bia Vaz. Na seleção sub-20, Jéssica de Lima é assistente do técnico Jonas Urias, enquanto Simone Jatobá comanda o time sub-17, auxiliada por Lindsay Camila e da preparadora de goleiras, Marlisa Wahlbrink.

Revelada aos 13 anos como jogadora, a Duda se dedica ao futebol feminino há mais de três décadas e me revelou alguns dos projetos agora na CBF.

"Ao lado da Aline Pelegrino e os demais membros da CBF, estou montando um calendário para os próximos dois anos, inserindo as datas Fifa e os jogos da seleção, tanto adulta como das categorias de base. Ainda temos o projeto de criar a seleção sub-15, que nascerá assim que esta pandemia der uma trégua. Também estamos montando um projeto das estrelas do futuro, já pensando nas Copa de 2023 e 2027. Desde que assumi, já foram feitas duas convocações e tivemos o cuidado de manter a igualar as intensidades dos trabalhos em relação às meninas que jogam no exterior e aqui no Brasil para que possamos evoluir e melhorar. Também estamos monitorando, com o auxílio da tecnologia, as meninas que atuam no Campeonato Brasileiro para termos ciência do rendimento e desgaste", disse.

"Com a experiência da Pia Sundhage, que foi duas vezes medalha de ouro nos Jogos Olímpicos com os Estados Unidos, e a toda a bagagem da Aline e minha, vamos conseguir fazer um futebol feminino competitivo nos próximos anos", acrescentou.

Contratação milionária

Outro fator que ainda é preciso ocorrer no futebol feminino do Brasil, e que deve se concretizar nos próximos 12 meses, é a compra milionária dos direitos econômicos de uma jogadora para atrair ainda mais a atenção da mídia e do público. Além disso, acredito que em um curto período teremos atletas recebendo salários na casa dos R$ 100 mil, como ocorre entre os homens. Isso valorizará ainda mais a expansão da modalidade.

Atualmente, o maior salário entre as mulheres que disputam o Campeonato Brasileiro feminino não passa dos R$ 20 mil. Na Série A do Brasileirão, é comum ouvirmos casos de atletas que recebem entre R$ 400 mil a R$ 1 milhão. É preciso que se torne rotineiro sabermos de meninas que ganham acima de R$ 100 mil para que o esporte seja, enfim, reconhecido. Este seria um legado importante para as pioneiras que tanto batalharam para que o futebol feminino vingasse no Brasil, como a Marta, Formiga, Cristiane, Sissi..

Ana Vitória defende o Benfica desde janeiro de 2019 e já acumula convocações à seleção feminina de futebol - Divulgação - Divulgação
Ana Vitória defende o Benfica desde janeiro de 2019 e já acumula convocações à seleção feminina de futebol
Imagem: Divulgação

Temos craques espalhadas pelos clubes brasileiros e do exterior, tanto que, recentemente, Pia Sundhage convocou apenas jogadoras que atuam na Europa e na China para um período de treinamentos em Portimão (Portugal), visando os Jogos Olímpicos de Tóquio. Além da seis vezes melhor do mundo Marta, o períOdo apresentou oito novidades: a goleira Daniele Neuhaus (Benfica), a lateral direita Rayanne (Sporting Braga), as meio-campistas Giovanna (Barcelona), Laís (Apollon Limassol) e Ana Vitória (Benfica), além das atacantes Mylena (Familicão), Nycole (Benfica) e Valéria (Madrid). A lateral esquerda Jucinara Paz, do Levante-ESP, também tem se destacado no Velho Continente.

Eu a conheci a Ana Vitória ainda menina, quando ela tinha cerca de 15 anos, em um evento na cidade natal dela, em Rondonópolis, no Mato Grosso. Era uma palestra do meu projeto chamado 'By Tinga', curso voltado para atletas em formação.

Naquele dia, havia inúmeros meninos na sala e ela era a única menina, pois ela jogava entre eles. Alguns anos depois, essa menina é a camisa 10 do Benfica e se tornou xodó da torcida, ainda mais por ter o mesmo nome da mascote do clube, a Águia Vitória. Agora com 20 anos, a Ana já é apontada como o futuro da nossa seleção.

Até os europeus estão tendo um olhar mais carinhoso com a futura geração do nosso futebol feminino.

*Com colaboração de Augusto Zaupa