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Tales Torraga

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Hoje apagada no Brasil, nova safra de técnicos brilha e domina na Argentina

Eduardo Domínguez é apresentado como técnico do Independiente - Divulgação CAI
Eduardo Domínguez é apresentado como técnico do Independiente Imagem: Divulgação CAI

Colunista do UOL

14/01/2022 09h06

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A contratação do argentino "Turco" Mohamed pelo Atlético-MG expõe mais uma vez a nova safra de técnicos de ponta no Brasil. Como assinala o colega Rodolfo Rodrigues, agora são seis os treinadores estrangeiros na Série A. E o mais emblemático: dois portugueses e um argentino são os "cabeças do trio de ferro" do momento, Palmeiras, Flamengo e Atlético-MG.

Tal dificuldade não se vê na vizinha argentina, uma reconhecida referência mundial na qualidade dos seus treinadores — e que renova seus valores neste 2022 como poucas vezes antes.

Cinco grandes, quatro técnicos novos

Na Argentina historicamente há o grupo dos "cinco grandes" do futebol local: River Plate, Boca Juniors, Independiente, Racing e San Lorenzo. E desses cinco, quatro hoje são comandados por técnicos da nova geração.

Um deles merece até uma menção especial. É o caso de Marcelo Gallardo, que entra em sua oitava temporada pelo River Plate. Gallardo chegou ao clube em 2014 quando tinha 38 anos. Ganhou tanto (14 títulos em 7 anos) que se tornou aquilo que merecidamente é: uma "lenda" no comando do clube, alguém que personaliza uma mudança de rota na louca história argentina.

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Marcelo Gallardo, técnico do River Plate, uma lenda para os argentinos
Imagem: Amilcar Orfali/Getty Images

Marcelo recebeu do River sua primeira oportunidade como técnico de ponta no país e não desperdiçou. Antes, treinara apenas o Nacional do Uruguai, seu último clube como jogador.

Falar de recorde de títulos na Argentina é citar também Sebastián Battaglia, o atual técnico do Boca Juniors, 18 vezes campeão como volante da equipe.

Hoje com 41 anos, vive sua primeira oportunidade em um time de ponta depois de um árduo trabalho na base do clube xeneize. Foi-se o tempo em que o banco de reservas do Boca era apenas para técnicos de bagagem internacional.

As Libertadores recentes tiveram treinadores como o "Vasco" Arruabarrena e o "Mellizo" Guillermo Barros Schelotto, outros dois exemplos de como os treinadores de ponta do país vizinho brotam como a erva-mate da província de Misiones.

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Sebastián Battaglia, técnico do Boca Juniors
Imagem: Divulgação CABJ

Quem passou pelo Boca como jogador e hoje busca espaço como técnico é o ex-volante Fernando Gago, que comanda o Racing desde outubro. Gago é o "caçula" dos técnicos de ponta na Argentina: tem só 35 anos. E seu rival no Independiente será outro representante da nova camada: Eduardo Domínguez, 43 anos, ex-Colón de Santa Fé, agora em sua primeira oportunidade em um grande na Argentina.

A exceção no grupo dos cinco grandes argentinos é Pedro Troglio, 56 anos, novo técnico do San Lorenzo. Treinador desde 2003, ele é conhecido pelo carisma e por motivar seus jogadores — e só assumiu o cargo porque jovens como Hernán Crespo, Cacique Medina e Gabriel Heinze não se interessaram pelo momento do clube, que vive séria crise institucional e financeira.

E sequer citamos aquele que teria méritos para integrar qualquer lista de ponta de treinadores da América do Sul e preferiu ficar no Defensa y Justicia, o brilhante (e agora bem menos rebelde) Sebastián Beccacece, de 41 anos.

Não custa lembrar: e quem conhecia o técnico Lionel Scaloni, de 43 anos, hoje a cabeça da seleção argentina que está invicta há 27 jogos, maior série entre todas as seleções de ponta no mundo?

Razões da disparidade

Como os argentinos costumam brincar, o Brasil "pode ser a terra dos jogadores, mas a Argentina é o país dos técnicos de futebol", como explicamos em detalhes na coluna publicada há exatamente um ano.

De fato, o interesse do país vizinho em seguir a carreira é incomparavelmente maior. E sem falar no gosto por aventuras. Gago, por exemplo, deixou para trás a vida de luxo vivida em Roma, Madri e Buenos Aires sem pensar duas vezes antes de enfrentar o calor de janeiro na modesta sede do Aldosivi, sua primeira tentativa como técnico.

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Fernando Gago, técnico do Racing
Imagem: Divulgação Racing

Hernán Crespo era outro bom exemplo. Depois de tanta badalação em Milão, Londres e Núñez, seu lugar no mundo há pouco era Florencio Varela, subúrbio de Buenos Aires. Não se vê, nos grandes ex-jogadores brasileiros, tamanha aptidão para treinar um time e encarar imprensa e torcida neste futebol "minuto a minuto" das redes sociais.

O volume de treinadores argentinos é de fato enorme, acima dos 15 mil técnicos licenciados. Na Libertadores-2020, os argentinos comandaram 14 dos 32 clubes da fase de grupos. Levantamento do Centro Internacional de Estudos do Futebol, na Suíça, revelou que em 2020 a Argentina era o país com mais treinadores em todo o mundo - 68 técnicos ativos, em 22 ligas. O Brasil? Só 16 (23,5% da Argentina).

A elite hoje dá um panorama preciso da eficiência do alcance vizinho. Na Europa, impossível não mencionar o trio Mauricio Pochettino (no PSG), Marcelo Bielsa (Leeds United) e Diego Simeone (Atlético de Madri). No Brasil, Turco Mohamed, Juan Pablo Vojvoda e, até outro dia, Hernán Crespo, Jorge Sampaoli e Eduardo Coudet (Ariel Holan, Ramón Díaz, Diego Dabove...).

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Lionel Scaloni, técnico da seleção argentina
Imagem: REUTERS/Luisa Gonzalez

E também as seleções. Cinco técnicos argentinos dirigiram times na última Copa do Mundo, na Rússia - Sampaoli na própria Argentina, Ricardo Gareca no Peru, Héctor Cúper no Egito, José Pekerman na Colômbia e Juan Antonio Pizzi na Arábia Saudita.

Cultura, a paixão argentina

A formação argentina é concorrida e tradicional: o curso para ser técnico existe desde 1963, e o diploma é exigido desde 1994. Quem estudou qualquer assunto no país sabe da tradicional paixão argentina por conhecimento, gerando boas escolas e professores obsessivos, de tão exigentes que são.

No futebol não é diferente. Os três anos de cursos são transcorridos sem dramas e com interesse cada vez maior, pois as aulas se desdobram a temas cotidianos como psicologia e neurociência. Lucas Pratto, Loco Abreu e Andrés D'Alessandro, para ficar só em três exemplos bem conhecidos no Brasil, já encararam a dose de aulas e estão aptos a ser técnicos.

Basta ter interesse: qualquer candidato, inclusive do Brasil, pode estudar à distância no campus virtual da ATFA (Associação de Técnicos do Futebol Argentino).

A mescla da tradição do ensino e interesse dos alunos impede qualquer "furada de fila". Mesmo estrelas nos campos suam nos campus, e é engraçado perceber que os dois volantes da Argentina na Copa do Mundo do Brasil de 2014, Gago e Mascherano, já iniciaram suas carreiras de técnico. O "Jefecito" Mascherano é hoje o técnico da seleção sub-20 da Argentina.

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Sebastián Beccacece vive auge na Argentina, sendo chamado até de "Beccasexy"
Imagem: Divulgação Conmebol

Outra brincadeira bastante repetida na Argentina é o "aluno comer o livro como o jogador come a bola", ilustrando a raça necessária para lidar com a alta dose de estudos.

Em cenários assim, o QI ("Quem Indica") não existe - quem quer ver um argentino bravo é falar disso, por brincadeira que seja. O portenho em especial se vê não raramente como um referente mundial de intelecto, e é difícil tirar-lhe a razão, principalmente quando o papo se encaminha para os cinco prêmios Nobel conquistados pelo país entre 1936 e 1984 (e todos com larga atuação na mesma universidade, a UBA, de Buenos Aires).

Uma das explicações para este aspecto é o investimento em educação nas décadas passadas. A dimensão do país, claro, contribui. A população argentina hoje é de cerca de 45 milhões (e 212 milhões de brasileiros). A prioridade na educação ficou para trás, como mostram as datas dos prêmios Nobel, mas a base é forte e exigente, integral e multicultural. Quem encara com afinco os estudos em Buenos Aires termina com uma bagagem rica e uma formação que muitas vezes que não deixa nada a desejar à europeia.

Voltando aos técnicos, já caducou usar o idioma como desculpa (o que responder a quem insiste nisso em pleno 2022?). Pochettino está na França, Bielsa há anos é referência na Inglaterra, Schelotto e Almeyda andaram muito bem nos Estados Unidos. Relacionar o espanhol ao sucesso está obsoleto.

E a primeira atitude para o Brasil ter semelhante capacidade é reconhecer a eficiência do que é feito. Nem precisa ir longe.

Logo ali na fronteira está um exemplo dos melhores.