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Tales Torraga

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Respeito argentino com vítimas da ditadura deveria inspirar times do Brasil

Huracán restitui carteirinha de sócio desaparecido na ditadura argentina - Divulgação Huracán
Huracán restitui carteirinha de sócio desaparecido na ditadura argentina Imagem: Divulgação Huracán

Colunista do UOL

20/10/2021 04h00

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Aconteceu há duas semanas, e com uma emoção que parecia ser a primeira vez. Não era. Na Argentina, tais manifestações de respeito são cada vez mais comuns. Na sede do Huracán, o "sexto grande" do futebol do país, oito sócios desaparecidos na ditadura tiveram suas carteirinhas do clube restituídas como homenagem aos familiares das vítimas do último golpe militar.

Norberto Morresi, Oscar Oshiro, Norberto Hugo Palermo, Pablo Reguera, José Sanabria, Jorge Gurrea, Daniel Vázquez e Eduardo Vicente, a lista dos sócios. Em outra praxe argentina, foi lançado um livro alertando os jovens do que foi a ditadura e de como a sociedade deveria evitar tais genocídios.

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Huracán restitui carteirinha de sócios desaparecidos na ditadura argentina
Imagem: Divulgação Télam

O compromisso social do futebol argentino com o tema é extremamente sério. Tanto que no Huracán há um departamento de "Cultura, História e Direitos Humanos" justamente para tratar do assunto. Foi deste grupo a ideia de restaurar as carteirinhas e lançar o livro. "Com certeza há mais histórias, mas essas oito são o ponto de partida de um tema que seguimos caminhando", contou Néstor Vicente, responsável pelo departamento e pela iniciativa.

Os sequestrados, presos e mortos pela ditadura eram perseguidos nos estádios, onde bandeiras contrárias ao regime eram expostas, e depois capturados pelos militares em seus lugares de estudo ou trabalho.

O Banfield foi o primeiro clube do país a criar a iniciativa de reimprimir as carteirinhas, em outubro de 2019, com mais um livro para registrar aquele nefasto período do cotidiano argentino.

O Racing, em março de 2021, também adotou a homenagem das carteirinhas e dos livros (o excelente Desaparecidos do Racing). "É uma iniciativa que ajuda a compreender a história e o presente não apenas do futebol, mas também da sociedade em conjunto, e esta ideia tem tudo para ser imitada", falou Victor Blanco, presidente do Racing.

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"Memória, Verdade e Justiça", pede mural do Banfield em homenagem aos desaparecidos
Imagem: Divulgação Banfield

Não para menos, gigantes como o River Plate e o Boca Juniors já estudam como criar homenagens semelhantes —até mesmo em conjunto, algo impensável para quem conhece a rivalidade entre ambos. "Somos rivais, não inimigos. E, pelas vítimas do terrorismo de Estado, erguemos a mesma bandeira", afirma a campanha lançada por ambos em março deste ano.

O que foi a ditadura argentina

Por sete anos, de 1976 a 1983, milhares foram torturados nos mais de 340 "laboratórios do terror", com cerca de 30 mil vítimas. Em 24 de março de 1976, uma junta militar derrubou o governo da presidenta Isabelita Perón, viúva e sucessora de Juan Domingo Perón, falecido no exercício do poder.

Formada pelo general Jorge Rafael Videla, pelo almirante Emilio Massera e pelo brigadeiro Orlando Agostí, a junta violou os direitos humanos, suprimiu a liberdade de imprensa e de expressão e dissolveu o Congresso. Um processo sanguinário sem precedentes no país estava em marcha, resultando em cerca de 30 mil mortos e desaparecidos políticos, incluindo os terríveis voos da morte e a apropriação de crianças.

E o Brasil?

Em 31 de março de 1964, militares brasileiros contrários ao governo de João Goulart (PTB) destituíram o presidente e assumiram o poder por meio de um golpe. O governo comandado pelas Forças Armadas durou 21 anos e implantou um regime ditatorial. A ditadura restringiu o direito de voto, a participação popular e reprimiu com violência os movimentos de oposição.

Ao contrário da Argentina, onde o assunto é combatido com força, no Brasil há escalões do poder que celebram o golpe. Também em 31 de março, mas deste 2021, o recém-empossado ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, assinou uma mensagem alusiva à data dizendo que "eventos ocorridos há 57 anos, assim como todo acontecimento histórico, só podem ser compreendidos a partir do contexto da época".

Ao longo de pouco mais de 2 mil palavras, Braga Netto citava o cenário geopolítico polarizado na Guerra Fria, que em suas palavras representava uma "ameaça real à paz e à democracia" do país. Ele afirmava que o movimento militar de 1964, que derrubou o governo eleito de João Goulart, "era parte da trajetória histórica do Brasil" e "assim deviam ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março".

A diferença de postura é chocante também no futebol.

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"A memória estala até vencer", diz o Racing
Imagem: Divulgação Racing

Levantamento assinado pelo repórter Bruno Rodrigues na "Folha de S. Paulo" do último 1º de abril mostrava que todos os 26 times da Série A da Argentina se posicionaram contra o regime nas redes sociais em seu respectivo aniversário —apenas 7 brasileiros (Atlético-MG, Bahia, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Fortaleza e Internacional) fizeram algo semelhante em defesa da democracia.

Contando a Segunda Divisão de cada país, a disparidade era ainda maior, segundo a pesquisa da "Folha". Na Argentina, dos 35 clubes, 29 repetiram o exemplo das equipes de elite. Na Série B brasileira, apenas 5 (Confiança, Náutico, Ponte Preta, Remo e Vasco) dos 20 participantes repudiavam o golpe.

Atuando com firmeza buscando reparações, boa parte da sociedade argentina resiste e não permite o tema cair na vala do passado.

"Não há clubes, há pessoas", citou o presidente do Racing, Victor Blanco, com uma música da cantora mexicana Julieta Venegas (que vive em Buenos Aires) indagando "quem permitiria isso acontecer diante de nós".

Clubes e torcedores brasileiros que preferem manter o silêncio deveriam, neste caso, fazer o que já fazem sempre: apenas reparar na grama do vizinho.