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Tales Torraga

Afinal, Maradona envenenou mesmo Passarella?

Colunista do UOL

26/11/2020 04h02

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"O jogo limpo no futebol é invenção dos britânicos", dizia, com profundo desdém, o comandante da Argentina no Mundial de 1986, deixando evidente a maneira como encarava uma de suas duas profissões - além de treinador, Carlos Salvador Bilardo era médico ginecologista. Durante sete anos, dividiu-se entre a atuação futebolística e o atendimento às pacientes do Hospital Alvear, em Buenos Aires.

Maradona - Reprodução El Gráfico - Reprodução El Gráfico
Maradona e Passarella no México 1986
Imagem: Reprodução El Gráfico

Nos tempos de jogador, por exemplo, entrava em campo com uma agulha escondida no meião e a usava para espetar os oponentes nas cobranças de escanteio. "É que naquele tempo não existia aids", explicaria anos depois, como se isso de alguma forma limpasse sua barra. Poucos imaginavam, contudo, que ele estaria disposto a aplicar esse vale-tudo contra integrantes de sua própria equipe - no caso, ninguém menos que o homem que levantou a taça em 1978, Daniel Passarella.

Trata-se possivelmente do mais espantoso episódio da louca história da seleção. Em sua gênese está a rivalidade visceral entre Bilardo e César Luis Menotti. Para o Narigón, conduzir a Argentina ao título na Copa de 1986 não seria o bastante. Era necessário que nenhuma impressão digital de seu odiado antecessor estivesse na taça.

Às vésperas do primeiro jogo, o veterano zagueiro foi assolado por uma enterocolite, inflamação do intestino delgado e do cólon que provoca cólicas, vômitos, mal-estar e uma violentíssima diarreia. À primeira vista, parecia se tratar de um típico caso do que os mexicanos chamam de "vingança de Montezuma", o explosivo desarranjo intestinal sofrido por muitos visitantes que decidem provar os tacos, enchiladas e carnitas oferecidas pelos ambulantes da capital. Mas como explicar o fato de que Passarella fora o único afetado pela intoxicação alimentar dentro da concentração toda? A suspeita recaía sobre ninguém menos que Carlos Bilardo.

Conforme essa versão, em que boa parte do país acredita piamente até hoje, o técnico decidiu simplesmente envenenar o ex-capitão da Argentina para tirá-lo de combate e abrir caminho a Maradona, desafeto do zagueiro e participante da sabotagem.

Passadas mais de três décadas do ocorrido, a desconfiança jamais foi dissipada. Pelo contrário: os indícios ficaram ainda mais fortes. Na Copa seguinte, por exemplo, a comissão técnica de Bilardo seria protagonista de um caso parecido, o da água batizada entregue ao brasileiro Branco, trama revelada aos risos por Maradona.

Perto do trigésimo aniversário da conquista, o documentário 1986, La história detrás de la Copa exibiu depoimentos que parecem sustentar a acusação contra o técnico. Bilardo jamais admitiu a sabotagem e garantiu que a comissão fez de tudo para curar Passarella: "Buscamos os melhores médicos do México", disse ele no filme. Mas Pato Fillol, velho companheiro do Kaiser, diz não ter dúvidas do que aconteceu. "Bilardo lhe deu um purgante e quase o mata'', afirmou ao jornal La Voz. "É literal, todos sabemos, mas ninguém se dispõe a falar. Eu não tenho problema. Onde estava Passarella durante o Mundial? Internado com uma diarreia infernal. Sou um dos poucos que contam."

Celso de Campos Júnior, Giancarlo Lepiani e eu publicamos em 2018 o livro "Copa Loca - As inacreditáveis histórias da Argentina nos Mundiais", cujo trecho reproduzimos acima. A obra de 216 páginas segue à venda no site da editora, a Garoa Livros.