Com jogos longos, o tênis vai muito bem, obrigado. Viu, Piqué?

Ler resumo da notícia
Alguns anos atrás, Gerard Piqué, então em atividade como zagueiro do Barcelona, decidiu investir no tênis. Juntou um grupo de investidores e ajudou a candidatura do americano David Haggerty à presidência da Federação Internacional de Tênis (ITF). Haggerty foi eleito tendo como base de sua campanha uma revolução na Copa Davis. Ele alegava que a competição centenária não se sustentaria mais financeiramente, garantiu que traria investidores e, claro, prometeu mais dinheiro para as federações dos países. E como o colégio eleitoral é formado por presidentes de federações, Haggerty foi eleito (e segue lá até hoje).
A ideia principal na época era acabar com os jogos em melhor de cinco sets, fazer apenas uma fase de confrontos em casa/fora e, depois, juntar, no fim do ano, 18 países em uma sede única. Piqué e sua trupe - o famigerado grupo Kosmos - acreditavam que o tênis atrairia torcedores de todas as partes do mundo e lotaria a Caja Mágica, em Madri, como nas Copas do Mundo da Fifa. A primeira edição desse novo formato aconteceu em 2019 e foi um fiasco de público e de organização. Houve jogos entrando pela madrugada, confrontos importantes acontecendo simultaneamente, tenistas de renome fazendo partidas que só cumpriam tabela, e o público não foi o que se imaginava.
De lá para cá, a ITF tentou outros formatos, inclusive com sedes múltiplas, e segue tentando algo que ressuscite o interesse de outrora pela Copa Davis. O grupo Kosmos, que havia prometido um investimento de US$ 3 bilhões ao longo de 25 anos, entrou em litígio com a federação e se retirou do negócio, provavelmente prevendo o enorme prejuízo que teria com o fiasco. Piqué, no entanto, não desiste. Em um vídeo recente, produzido para divulgar a King's League (evento de futebol 7 criado pelo mesmo espanhol), o ex-zagueiro fala sobre como ele acredita que o tênis precisa mudar:
Un saludo a Gerard Piqué, que decía que nadie quería ver juegos de 5 minutos o que el tenis perdía interés por normas viejas o que era muy lento.
-- José Morón (@jmgmoron) June 9, 2025
La final Alcaraz-Sinner de ayer, que duró 329 minutos, la vio TODO EL MUNDO.
No se la perdió nadie. pic.twitter.com/48EfZIPF3F
"As pessoas não querem ver um game de cinco minutos com "iguais", "vantagem", "iguais", "vantagem". Não. Isso aconteceu comigo na Copa Davis. Você tenta chegar ao esporte e mudar as coisas, e não há jeito. A ITF não muda as coisas. Depois dessa experiência na Copa Davis, pensei "crio minha própria competição" porque quando você vê que depende de federações com pessoas mais velhas, que estão lá há muitos anos, que têm medo de mudança e não querem mudar absolutamente nada, que se danem. Tênis é um esporte espetacular. Todas estatísticas estão dizendo que as pessoas vêm jogando menos tênis. Cada vez mais as pessoas jogam padel ou pickleball, nos Estados Unidos, por muitas razões." ... "Se você não joga um esporte, você normalmente não o acompanha. Você vai perdendo seguidores aos poucos."
Bom, o primeiro ponto a fazer é que Piqué mente descaradamente. Haggerty foi eleito e promoveu a mudança na Copa Davis como Piqué e seu grupo queriam. Não deu certo. Simples assim. Nem as variações do formato original tiveram sucesso. Então não há que culpar os velhinhos das federações porque estes, sedentos por dinheiro, aprovaram uma grande mudança na Davis.
O segundo ponto é que Piqué me parece um tanto equivocado quando argumenta que se as pessoas não praticam um esporte, param de acompanhá-lo. O futebol talvez seja o melhor exemplo disso. E o tênis nunca foi um esporte que dependeu do seu número de praticantes para alimentar paixões e vender ingressos. Sim, o tênis recreativo vive em um mundo quase à parte, mas isso não afeta necessariamente as finanças do esporte profissional. O tênis tem, sim, outros problemas econômicos - como, por exemplo, tornar viável a carreira para atletas de ranking abaixo de 250 - mas não há relação direta aí com o número de praticantes. O melhor exemplo? O tênis recreativo tem muito mais duplistas do que simplistas, e isso não afeta o circuito profissional de maneira nenhuma. As simples são o ápice do esporte, como Carlos Alcaraz e Jannik Sinner mostraram neste domingo, em uma fabulosa final em Roland Garros.
Por que acabar com os cinco sets?
Outra birra de Piqué tem a ver com a duração das partidas de tênis. O clichê é alegar que elas fazem mal para o esporte. Que afastam o público mais jovem, que supostamente tem capacidade menor de manter atenção em algo por muito tempo (tese que é fácil de derrubar vendo analytics de longas livestreams de gamers e influencers de sucesso no YouTube ou na Twitch). No entanto, Ainda há gente como Piqué que quer colocar um ponto final nos jogos em melhor de cinco. Como se eles fizessem muito mal ao esporte.
Há vários elementos que posso colocar na mesa a favor dos cinco sets. O primeiro é que eles já são minoria. O circuito masculino tem 55 torneios. Todos eles são disputados em melhor de três. São cerca de 2.200 partidas por ano nesse formato. Em melhor de cinco? Apenas 508. Dessas 508, apenas uma pequena porcentagem dura, de fato, cinco sets. Em Roland Garros, foram somente 25 partidas (de um total de 127 jogos de simples). Ou seja, se considerarmos que há cerca de 100 jogos de cinco sets por ano (25 em cada slam), estamos falando de 4,5% do total de partidas de simples masculinas. Se colocarmos na conta jogos femininos (todos são em melhor de três), de duplas e duplas mistas, juntando Copa Davis, Billie Jean King Cup, United Cup, Copa Hopman e Laver Cup, esse número cai para perto de 1% do que se vê de tênis o ano inteiro (sem contar as centenas de torneios abaixo do nível 250!). Vale a pena mudar por uma quantidade desprezível assim?
Meu maior argumento a favor dos cinco sets é o seguinte: ainda que consideremos, mesmo que só por exercício de raciocínio, que eles são entediantes e afastam os fãs da modalidade (nem compro essa ideia, mas vale considerá-la para efeito de comparação), é esse mesmo formato que permite duelos épicos e históricos como o desta final de Roland Garros. São essas as partidas que habitam e habitarão a memória coletiva. Que furam a bolha. Que colocam o tênis nas barbearias, nas praças de alimentação, nos programas de variedades e nas TVs dos Outbacks da vida. São esses jogos que apresentam a um público novo (sim, novo, vejam só!) nomes como Alcaraz e Sinner. Que mostram haver uma nova geração. Que o esporte não será eternamente órfão de Borg e McEnroe ou Sampras e Agassi ou Federer e Nadal ou qualquer que tenha sido a grande rivalidade anterior.
Não, esse tipo de duelo não acontece todo dia. Mas são eles os memoráveis. Como Federer x Nadal em Wimbledon/2008 (até hoje considerado por muitos o maior jogo da história), Djokovic x Nadal em 2012, na Austrália (o mundo parou para ver um jogo de 5h53min) ou Djokovic x Federer em Wimbledon/2019 (aquele do 40/15). Ou ainda aquele Federer x Roddick de 2009 (16/14 no quinto set, quando não havia tie-break na parcial decisiva em Wimbledon). Ou, indo mais atrás, Roddick x El Aynaoui (21/19 no quinto set, no Australian Open de 2003). Ou, para os brasileiros, aquele delicioso Kuerten x Mirnyi no US Open de 2001.
Será que valeria a pena a mudança em troca de um par de horas de duração aqui e ali em uma quantidade ínfima de jogos (repito: 1%!)? Vale a pena o risco de não voltar a ver um clássico como este Alcaraz x Sinner? Acho que não. O tênis vai muito bem, obrigado. Viu, Piqué?
Coisas que eu acho que acho:
- Sou, sim, apegado a certas características do tênis e, por mim, o esporte seguiria sem tie-break no quinto set. Sobretudo em finais. Entendo que durante um torneio as partidas muito longas desgastem os atletas, e estes entrariam sem condições de competir na fase seguinte (vide Isner após aquele jogo de 11h05min em Wimbledon/2010). Mas numa final? Gostaria de ver até onde Alcaraz e Sinner teriam ido neste domingo.
- Até este domingo, nenhuma final de Roland Garros tinha ultrapassado a marca das 5h de duração. O recorde pertencia a Wilander x Vilas, que duelaram por 4h42min em 1982. O sueco venceu por 6/4 no quarto set. Sim, foram apenas quatro sets, com direito a um pneu: 1/6, 7/6(6), 6/0 e 6/4.
- O shot clock, aquele reloginho que marca os 25 segundos que os tenistas têm para iniciar os pontos, teve efeito contrário. As autoridades queriam acelerar os jogos e reduzir o tempo entre os pontos. Mesmo quanto o tempo-limite era de 20 segundos, a coisa era mais rápida. Não havia relógio na beira da quadra, e os tenistas tinham rotinas menos demoradas. Hoje, com a contagem regressiva visível para os atletas, muitos deles esperam até o último segundo possível para iniciarem seus movimentos de saque.
- Evidentemente, também pesa o fato de o tênis ser mais físico hoje em dia. Aerobicamente, os ralis também exigem mais. Logo, os árbitros nem sempre disparam o shot clock logo que os pontos terminam. A duração do rali, a temperatura no dia e outros elementos forçam os oficiais a atrasarem o início da contagem regressiva. E assim as partidas vão durando mais.
- Nem aconteceu neste domingo, mas outro fator que provoca partidas mais longas é o regulamento que permite mais idas ao banheiro em jogos longos. Em cada pausa, o tenista tem direito a cinco minutos no banheiro caso use o local para urinar/defecar e trocar de roupa. E esses cinco minutos só começam a contar quando o atleta chega no banheiro. Portanto, contando o tempo de deslocamento de ida e volta, o jogo pode facilmente ficar parado por 7-10 minutos (dependendo da distância entra a quadra e o banheiro). E tudo dentro da regra.
.
Quer saber mais? Conheça o programa de financiamento coletivo do Saque e Voleio e torne-se um apoiador. Com pelo menos R$ 15 mensais, apoiadores têm acesso a conteúdo exclusivo, como podcast semanal, lives restritas a apoiadores, áudios exclusivos e de entrevistas coletivas pelo mundo, além de ingresso em grupo de bate-papo no Telegram, participação no Circuito dos Palpitões e promoções.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.