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Entendendo Djokovic: 78 noites em um abrigo antibomba

Yugoslav Army/RL/Getty Images
Imagem: Yugoslav Army/RL/Getty Images

Colunista do UOL

24/07/2020 04h00

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Um estrondo enorme chacoalhou a minha cama, e o barulho de vidro estilhaçado parecia vir de todos os cantos ao meu redor. Abri os olhos, mas não havia quase nada para mudar minha perspectiva. O apartamento inteiro estava mergulhado na mais absoluta escuridão. Outra explosão e, então, como se também tivessem sido acordadas com o choque, as sirenes do ataque aéreo dispararam, e o negrume da noite tornou-se ainda mais negro com seus gritos. Era como se estivéssemos vivendo dentro de um globo de gelo e alguém o tivesse atirado no chão.

O parágrafo acima abre o capítulo "Reveses e Abrigos Antibomba" do livro "Sirva Para Vencer", de autoria de Novak Djokovic e lançado no Brasil em 2015 pela Editora Évora. Não é uma biografia. É, na verdade uma publicação sobre a famosa dieta sem glúten do atual número 1 do mundo, que ele recomenda para que se alcance a "excelência física e mental".

Ainda assim, o livro traz um belo e forte capítulo relatando sua experiência durante os bombardeios da OTAN a Belgrado, capital sérvia, em 1999, quando Nole ainda tinha 11 anos. Foram 78 noites consecutivas no abrigo antibomba do prédio de uma tia. Djokovic diz que aquele período lhe ensinou a manter a mente aberta e sempre buscar novos caminhos, e isso explica muito sobre sua motivação para falar tudo que falou e abordou de não-ortodoxo durante a paralisação do circuito mundial devido à pandemia de covid-19.

Por isso, reproduzo abaixo trechos desse capítulo inicial de "Sirva Para Vencer". Talvez ajude a entender como Djokovic descobriu sua intolerência a glúten por meio do processo aparentemente insano do doutor Igor Cetojevic e como funciona até hoje a "mente aberta" do atual número 1 do mundo do tênis.

"Nole! Nole!" Meu pai gritou por mim, usando meu apelido familiar desde que eu era menino. "Seus irmãos!" Minha mãe, saltando da cama com o estrondo da explosão, havia caído de costas e batido a cabeça contra o aquecedor. Meu pai tentava ajudá-la, enquanto ela lutava para recuperar a consciência. Mas onde estavam meus irmãos? Marko tinha 8 anos. Djodje, 4. Com 11 anos, eu era o irmão mais velho e havia assumido a responsabilidade de mantê-los em segurança desde que as forças da OTAN começaram a bombardear minha cidade natal, Belgrado. Os bombardeios foram uma surpresa para nós. Durante a minha infância, a Sérvia ainda era administrada como uma ditadura comunista e pouquíssimas informações sobre o que estava realmente acontecendo chegavam à opinião pública. Havia rumores de que a OTAN poderia atacar, mas ninguém tinha certeza. Mesmo que nosso governo estivesse se preparando para os bombardeios, nós éramos mantidos desinformados.

Mesmo assim, como os rumores haviam se espalhado e tal como a maioria das famílias de Belgrado, nós tínhamos um plano. A 300 metros de casa, a família de minha tia morava em um prédio com abrigo antibomba. Se pudéssemos chegar até lá, estaríamos seguros. Outro guincho alto soou sobre nossas cabeças, e outra explosão chacoalhou nosso prédio. Minha mãe havia recuperado os sentidos, e nós corremos desabalados escada abaixo, chegando às ruas de Belgrado, todas sem luz. A cidade estava totalmente às escuras e com as sirenes gritando alto, nós mal podíamos ver ou ouvir. Meus pais correram pelas ruas negras com meus irmãos em seus braços, e eu estava logo atrás deles — até que não estava mais. Meu pé tropeçou em algo e despenquei dentro da escuridão.

Eu bati meu rosto com violência no chão e arranhei minhas mãos e meus joelhos. Estatelado no concreto gelado, de repente, eu estava sozinho. "Mamãe! Papai!" Eu gritei bem alto, mas eles não podiam me ouvir. Eu vi os corpos deles ficando menores e escurecendo, desaparecendo dentro da noite. E, então, aquilo aconteceu. Por trás de mim, ouvi algo rasgando o céu como se uma enorme pá de neve estivesse raspando o gelo das nuvens. Ainda pregado no chão, eu virei e olhei para nossa casa. Surgindo do alto do nosso prédio vinha o acinzentado triângulo de aço de um avião bombardeiro F-117. Olhei horrorizado quando sua enorme barriga metálica se abriu exatamente sobre mim, despejando dois mísseis guiados por laser cujo alvo eram minha família, meus amigos, meus vizinhos — tudo que eu conhecia até então. O que aconteceu a seguir eu jamais consegui esquecer. Mesmo hoje, os sons muito altos ainda me enchem de terror.

...

Eu vi quando os dois mísseis, nascidos da barriga daquele bombardeiro metálico, rasgaram o céu sobre minha cabeça e caíram em um edifício a poucos quarteirões de distância — um hospital. Instantaneamente, houve a explosão e a estrutura horizontal do prédio ficou parecendo um gigantesco clube sanduíche recheado de fogo. Lembro do odor arenoso, poeirento e metálico no ar e de como toda a cidade reluzia como uma tangerina madura. Agora eu podia ver meus pais a distância, esquivando-se e correndo, e me levantei do chão, disparando pela rua sob aquela luz dourada e avermelhada. Nós chegamos ao edifício em que minha tia morava e nos refugiamos no abrigo de concreto. Havia outras pessoas moradoras do edifício, cerca de 20 famílias. Todas desceram para o abrigo com seus pertences mais valiosos, cobertores, comida, água — porque ninguém sabia quanto tempo teríamos que ficar ali. Havia crianças chorando. Eu não parei de tremer pelo resto da noite.

Djokovic - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Por 78 noites consecutivas, minha família e eu nos escondemos no abrigo antibomba do prédio de minha tia. Toda noite, às 8 horas, uma sirene anunciava o perigo e todo mundo devia abandonar suas casas. Pela noite adentro, nós ouvíamos as detonações e, quando os aviões voavam baixo, faziam um barulho horrível como se o céu estivesse caindo em pedaços. O sentimento de desamparo dominou nossas vidas. Não havia nada que pudéssemos fazer a não ser sentar, esperar, torcer e rezar. Em geral, eles atacavam durante a noite, quando a visibilidade era menor. Era quando nos sentíamos mais desesperançados; não podíamos ver nada, mas sabíamos que estavam vindo. Você espera e espera e, então, quando cai no sono, aquele barulho horrível o desperta de novo.

Mas a guerra não me impediu de continuar a perseguir meu sonho como tenista, Durante os dias, eu encontrava Jelena [Gencic, sua professora de tênis] em algum lugar de Belgrado em que pudéssemos treinar; ela me amparava e tentava me ajudar a levar uma vida normal, mesmo depois que sua irmã foi fatalmente ferida por uma parede que desabou sobre ela. Nós íamos para o local que havia sido mais recentemente atacado, imaginando que, se eles bombardearam aquele lugar ontem, provavelmente não voltariam hoje, Jogávamos sem rede, jogávamos sobre o concreto quebrado.

Minha amiga Ana Ivanovic também tinha que treinar em uma piscina abandonada. Quando resolvíamos ousar, voltávamos nos esgueirando para nosso clube de tênis local, o Partizan. O clube ficava localizado perto de um colégio militar. Com certeza, quando a OTAN nos atacava, bombardeava primeiro as bases militares para enfraquecer nosso sistema de defesa, portanto o Partizan não era o melhor lugar para passar o tempo. Mas meu amor pelo tênis sempre prevaleceu e, apesar das ameaças reais, eu me sentia seguro ali. Nosso clube tornou-se uma válvula de escape para mim e para meus colegas tenistas. Nós praticávamos diariamente por cerca de quatro ou cinco horas; e até disputávamos torneios amadores entre os bombardeios. Isso nos trazia tanta felicidade que podíamos até jogar tênis em tempos de guerra.

Mesmo que pensássemos se iríamos sobreviver ou não à guerra, meus pais faziam de tudo para que nossa vida parecesse normal. Meu pai tomava dinheiro emprestado em todo lugar que podia para manter a vida que sempre conhecemos. Estávamos cercados pela morte, mas ele não queria que soubéssemos disso, não queria que soubéssemos como estávamos pobres. E minha mãe era extremamente forte, sempre encontrando um jeito de preparar comida e de nos deixar levar nossa vida de criança despreocupadamente. Tínhamos apenas algumas horas de fornecimento de eletricidade por dia, portanto ela tinha que ser rápida para cozinhar e deixar prontas nossas refeições antes de a energia ser cortada novamente. Era para garantir que teríamos, pelo menos, sopa e sanduíches para comer.

Claro, meus pais não conseguiam fazer muito para esconder como nossa vida havia realmente mudado. Todas as manhãs havia uma nova cratera, um novo prédio recém-queimado, uma nova pilha de destroços que uma vez fora uma casa, um carro, uma vida. Nós comemoramos meu décimo segundo aniversário no Partizan. Enquanto meus pais cantavam "Parabéns a Você", suas vozes foram abafadas pelo rugido dos bombardeiros voando sobre nossas cabeças.

No início da guerra, nós vivíamos com medo. Mas em algum ponto durante o curso dos bombardeios, algo mudou — em mim, em minha família, em meu povo. Decidimos parar de ter medo. Depois de tantas mortes, de tanta destruição, nós simplesmente paramos de nos esconder. Assim que você percebe que é realmente impotente, um sentido de liberdade toma conta de você. O que está para acontecer, acontecerá; não há nada que se possa fazer para mudar isso.

De fato, meus conterrâneos começaram a fazer piadas sobre como nossa situação era ridícula. A OTAN estava bombardeando nossas pontes sobre o Danúbio. De vez em quando, era possível ver pessoas se reunindo sobre as pontes com camisetas pintadas com alvos, desafiando as bombas. Um amigo meu até tingiu o cabelo com círculos em preto e branco para parecer mais com um alvo. Essas experiências tornaram-se lições. Aceitar realmente a sua própria impotência é incrivelmente libertador. Sempre que me pego muito nervoso, infeliz ou frustrado; sempre que me sinto um mimado que quer mais do que merece, tento mudar meu foco, lembrando-me de como cresci, lembrando como foi minha vida passada. Isso coloca tudo de novo em perspectiva. Eu volto a me lembrar de tudo que realmente tem valor para mim: família, diversão, alegria, felicidade e amor.

Definitivamente, o amor é meu maior valor na vida. E sempre o que procuro e tento nunca acreditar que está garantido. Porque em uma fração de segundo, a vida pode virar de ponta cabeça. Por mais lenta e difícil que sua jornada até as estrelas possa ser, não importa quantos anos você tenha levado para chegar até lá, você pode perder tudo em um instante. Temos um ditado em nosso país: "Quando nada dói, ponha uma pedra no sapato e vá andar." Tenha sempre isso em mente, porque devemos estar atentos às dificuldades que os outros enfrentam. Afinal nós não fomos criados para estar sozinhos nesse planeta; fomos criados para aprender uns com os outros em união e tentar tornar esse planeta um lugar melhor.

Crescer em meio à guerra me ensinou outra lição crucial: a importância de manter a mente aberta e nunca deixar de buscar novos caminhos para se realizar. Como povo, nós éramos controlados por um governo que nos mantinha desinformados. As consequências disso continuam a ser sentidas até hoje. Embora nós tenhamos nos recuperado da guerra, ainda não nos livramos do modelo mental que o comunismo nos impôs: que existe um único modo de pensar, um único modo de viver, um único modo de comer. O tênis e meus estudos com Jelena me abriram a mente e estou determinado a mantê-la aberta. Na primavera de 2013, quando estava disputando o Aberto da França, recebi a notícia de que Jelena havia falecido. Mas as lições que ela me ensinou jamais ficarão para trás.

É por isso que, em 2010, quando um homem estranho, magro, de cabelos grisalhos e bigode aproximou-se com uma história maluca de que tinha me visto na televisão e disse que sabia como me ajudar, eu prestei atenção. Muito do que o doutor Igor Cetojevic me ensinou sobre saúde, sobre vida e, acima de tudo, sobre alimentação — pode lhe parecer inacreditável. Mas digo de novo: inacreditáveis também serão os resultados.

"Sirva Para Vencer" está à venda em todas as grandes lojas online e também no site da editora Évora por R$ 49,90.