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Joia rara de Burkina Faso segue os passos de Maurren em São Bernardo

Némata Nikiema e Tânia Moura - Reprodução/Instagram
Némata Nikiema e Tânia Moura Imagem: Reprodução/Instagram

02/02/2022 04h00

Némata Nikiema tinha 15 anos quando recebeu o convite para percorrer um caminho que ninguém nunca tinha percorrido. Sair de Cissin, no centro de Burkina Faso, e se mudar para Lavras, no interior de Minas Gerais. Filha de um taxista e de uma funcionária de lotérica, viu na oferta uma possibilidade de se tornar atleta e de permitir que houvesse dinheiro na família para todos os quatro irmãos estudarem.

Três anos depois, Némata é uma das joias lapidadas pelos técnicos Nélio e Tânia Moura, responsáveis por formarem, entre outros, a campeã olímpica Maurren Maggi. Logo no primeiro torneio da temporada, no fim de semana passado, fez índice, aos 18 anos, no salto em distância, para o próximo Mundial Sub-20. Na temporada passada, aos 17, já competiu o Mundial Sub-20, mas nos 100m, prova em que tem sido a melhor da categoria em atividade no Brasil. Tudo isso sem nunca ter competido por um clube.

Nascida em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, e treinando em uma escola em Cissin, Némata viajou pela primeira vez de avião para participar da Gymnasíade, uma espécie de mundial escolar, no Marrocos, em 2018. Lá, chamou atenção de Fernando de Oliveira, o "doutor atletismo", professor da Universidade Federal de Lavras e coordenador do Centro Regional de Iniciação do Atletismo, conhecido como Cria Lavras.

"Ele me chamou para conversar, falou que gostou de mim e fez uma pergunta, se eu gostaria de vir treinar com ele. Na época, eu não sabia nada sobre o Brasil, mas o que me motivou foi ter a chance de dar um futuro melhor para mim e para meus pais. Somos em quatro irmãos e é muito difícil para, com o dinheiro que meus pais ganham, pagar a escola para todos. Seria menos peso para eles", contou Némata ao Olhar Olímpico.

Em Burkina Faso, a educação pública também é paga. O país, que é só o 182º no ranking de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), não tem centros de treinamento de alto rendimento e, até então, não tinha nenhuma medalha olímpica. O tabu foi quebrado em Tóquio, com Fabrice Zango, recordista mundial do salto triplo, que, não à toa, é a grande inspiração de Némata —ele também deixou o país em busca de educação e treinamento, no caso, na França, e hoje é medalhista olímpico e PhD em engenharia elétrica.

Sem conhecer nada sobre o Brasil, muito menos sobre Lavras, Némata aceitou o desafio e mudou-se para uma república de atletas na cidade mineira. Mas, poucos meses depois, Fernando teve um AVC e faleceu. O projeto seguiu mantido por meio de uma vaquinha virtual, que continuou a bancar os jovens atletas durante a pandemia.

Formada no ensino médio e falando português fluentemente (com sotaque francófono), Némata deixou Lavras somente no começo deste ano, depois de ser aprovada na seletiva do Centro de Excelência de Atletismo de São Paulo. Com o estádio do Ibirapuera abandonado, o projeto foi transferido para São Bernardo do Campo, no espaço que antes era chamado Arena Caixa. O alojamento da confederação de handebol passou a ser utilizado pelo pessoal do atletismo.

A joia rara

Em São Bernardo, passou a treinar com o casal de treinadores que é referência em saltos horizontais no Brasil. Juntos, Nélio e Tânia levaram seis atletas para a última Olimpíada: três chineses (incluindo Zhu Yaming, prata no salto triplo), o uruguaio Emiliano Lasa, e os brasileiros Eliane Martins e Mateus de Sá.

"Ela é uma joia rara, como atleta e como pessoa. Enriquece ainda mais o grupo culturalmente, e dá um prazer imenso trabalhar com ela. Ela teve uma boa formação em Lavras, e depois que veio para o Centro de Excelência Esportiva vimos o quanto ainda tem para evoluir. Podemos esperar falar bastante dela no futuro", avalia Tânia Moura.

Morando em um alojamento ainda recém-montado, Némata não tem televisão. Por isso, não assistiu aos jogos que levaram Burkina Faso à classificação às semifinais da Copa Africana de Nações. "É como se fosse um BBB, só que a gente tem celular", brinca a saltadora, uma das poucas atletas de nível internacional do seu país, que praticamente só leva atletas à Olimpíada por convite.

Com bolsa de estudos para cursar enfermagem na UniSant'Anna, em São Paulo, Némata sobrevive com apoios que recebeu do Colégio Vértice e da New On (ex-Prevent Senior Sports), além do antigo Bolsa Família. Por não ser brasileira, não tem direito a Bolsa Atleta. Para tentar melhorar os rendimentos, passou a oferecer serviço de trança de cabelo em São Bernardo.

Apesar dos excelentes resultados, ela nunca competiu por um clube. Saiu da escola em Burkina Faso para um projeto social em Lavras e, agora, para um grupo de treinamento ligado ao governo do estado de São Paulo. Por não ser federada, tem sido vetada em finais das competições. Em maio, foi a mais rápida das semifinais dos 100m no Brasileiro Sub-20, mas não pôde entrar na final.

"Se você não pode competir na final, o que adianta? Eu não posso receber Bolsa Atleta também, é chatinho", lamenta, sem, contudo, considerar a hipótese de se naturalizar brasileira. Quer colocar seu nome na história em Burkina Faso.