Topo

Olhar Olímpico

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Por que Fernando Fernandes, mesmo tetra mundial, nunca foi às Paralimpíadas

08/01/2022 04h00

Novo apresentador do No Limite, programa da Rede Globo, Fernando Fernandes carrega do lado de fora do peito quatro medalhas de campeão mundial na paracoagem, versão adaptada do esporte que consagrou Isaquias Queiroz. Mas, dentro do peito, leva a frustração de nunca ter disputado uma Paralimpíada. E não foi por falta de talento, ou de dedicação. No entender dele, o motivo foi a "vista grossa" do sistema paralímpico para atletas que, para ele, burlaram o sistema de classificação funcional.

Participante da terceira edição do BBB, também na Globo, em 2002, Fernando se envolveu em uma batida de carro em 2009, em São Paulo. No acidente, a medula foi comprimida e, por conta dessa lesão medular, ele ficou paraplégico, sem movimentos da cintura para baixo. No processo de reabilitação, mudou-se para Brasília, para ser tratado no Hospital Sarah Kubitschek, e lá conheceu a canoagem adaptada, incentivado pela atleta Diana Nishimura.

Até então, a canoagem adaptada ainda começava sua história como esporte internacionalmente. Em agosto daquele ano de 2009, pela primeira vez provas para deficientes foram incluídas no Mundial de Canoagem Velocidade, como exibição e com o nome de "paddleability". No ano seguinte, o Mundial disputado em Poznan, na Polônia, foi o primeiro a ter provas de paracanoagem. Com um ano de treino, Fernando Fernandes ganhou, com folgas, seu primeiro título mundial, no caiaque.

O evento foi um sucesso e, no fim daquele ano de 2010, o Comitê Paralímpico Internacional (IPC) decidiu que a paracanoagem seria um esporte do programa paralímpico a partir da Rio-2016. Com Fernando campeão mundial no K1-200 A, o Brasil já largava como favorito a uma medalha de ouro em casa. Mas as coisas saíram diferente do programado.

Fernando repetiu o título em 2011, 2012 e 2013, mas foi só quinto em 2014 e terceiro em 2015. Nesse meio tempo, as classes (a divisão de atletas a partir do grau de deficiência) mudaram. "Até 2015, a classificação era totalmente subjetiva na paracanoagem. Ela não conseguia ter validação científica, estudos que abordassem a funcionalidade real de um atleta", explica Leonardo Maiola, que foi coordenador técnico para paracanoagem brasileira e hoje é supervisorio técnico do CPB.

Até então, Fernando competia em uma classe para atletas que só utilizavam os braços para remar, passou a competir na KL1, mais baixa de três categorias funcionais. Ali, reclamava da presença de rivais que, no entender dele, tinham mais mobilidade.

No Mundial que serviu como seletiva para a Rio-2016, na Alemanha, Fernando foi apenas o sexto, atrás do piauiense Luis Carlos Cardoso, que levou o bronze e conquistou o direito de representar o Brasil na Paralimpíada. O ex-BBB não escondeu a insatisfação. "A gente entrou com protesto contra alguns países e os que a gente brigava muito eram o polonês (Jakub Tokarz), que foi campeão paralímpico no Rio, e é um que eu acredito que não tinha erro de classe. O inglês (Ian Marsden) a gente não concordava em nenhum momento. A gente entrava com protesto, reavaliavam e mantinham ele na categoria", lembra Maiola.

Em 2016, Fernando ficou em quinto lugar no Campeonato Mundial que serviu como seletiva para a Rio-2016, atrás de um chinês, do polonês, do britânico, e do também brasileiro Luis Carlos Cardoso, que terminou em terceiro e levou a vaga para a Paralimpíada. Frustrado, Fernando não escondeu o descontentamento.

"Dois anos atrás [em 2014], comecei a me deparar com uma realidade estranha na classificação funcional, que é colocar o devido atleta na devida categoria de acordo com sua lesão e com o que ele tem de funcional. De 2014 para cá o esporte começou a perder a mão disso, as pessoas aprenderam a bular esse sistema e essa regra para se beneficiar. Começaram a ter protestos, e desde então minha luta fora d'água é para moralizar o esporte", escreveu nas redes sociais na ocasião.

"É o momento mais difícil, lidar com a derrota mas também com a injustiça. Os classificadores funcionais são voluntários, sem responsabilidade nenhuma nisso, fazendo a classificação de forma amadora. Infelizmente, meu sonho paralímpico de anos foi por água abaixo, e acabei perdendo minha classificação nos últimos metros", acrescentou Fernandes, em tom de desabafo. Ele nunca citou diretamente Luis Carlos Cardoso, que na prática foi quem venceu a corrida brasileira pela vaga na Rio-2016.

Depois dessa frustração, Fernando deixou de competir no sistema oficial da canoagem paralímpica. "Esse é um sistema falho dentro do esporte paraolímpico, que precisa melhorar. Desisti daquilo e decidi seguir em frente com outros planos. Deixei uma história, um legado, apresentei o esporte para as pessoas. Continuo representando a canoagem como um todo e competindo provas em alto-mar, maratonas com pessoas com ou sem deficiência, mas não pratico mais aquela canoagem paraolímpica", contou em entrevista à revista Trip, em 2017.

Ao Globo Esporte, em 2019, Fernando fez acusações mais claras: "Quiseram, de alguma forma, mudar aquele cenário do atleta que vinha sendo campeão uma, duas, três, quatro vezes porque realmente treinava muito. Eles sentiram que tinham que tirar esse ciclo de vitórias da minha mão e não sabiam como. Eles então tiveram que usar a classificação para beneficiar atletas europeus, já que a canoagem é um esporte com muita força na Europa".

O agora apresentador do No Limite chegou a continuar treinando paracanoagem em São Paulo e a participar de provas de fora do sistema paralímpico. Nos últimos anos, ele vem se dedicando ao kitesurfe. Em outubro do ano passado, ele competiu no Sertões do kitesurfe, que percorreu mais de 500 quilômetros de praia no Nordeste.