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Olhar Olímpico

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Como brasileiras em seleção de vôlei geraram crise política em Ruanda

Seleção de vôlei de Ruanda tem quatro brasileiras - Divulgação/Federação Africana de Vôlei
Seleção de vôlei de Ruanda tem quatro brasileiras Imagem: Divulgação/Federação Africana de Vôlei

22/09/2021 12h00

Quatro jogadoras de vôlei que estavam sem clube no Brasil geraram uma crise política em Ruanda, pequeno país africano de 12 milhões de habitantes que nunca ganhou uma medalha olímpica. Escaladas para defenderem a seleção anfitriã no Campeonato Africano, na semana passada, elas acabaram suspensas por supostamente terem atuado de forma irregular. Em retaliação, Ruanda ameaçou expulsar as delegações do país. Agora, com investigações abertas por ordem do polêmico presidente Paul Kagame, um dirigente já foi detido.

No meio deste furacão está o técnico Paulo de Tarso Milagres, brasileiro que chegou a treinar a seleção masculina de Ruanda entre 2010 e 2011 e que, depois de um longo período comandando o Pinheiros na Superliga Feminina, aceitou o desafio de voltar ao país com um contrato de três meses, para jogar em casa o Campeonato Africano tanto no masculino quanto no feminino.

"Desde o primeiro contato, Ruanda me pediu indicação de atletas brasileiras ou estrangeiras que nunca jogaram pelas suas seleções nacionais, e foi o que fiz. Indiquei algumas meninas e coloquei a FRVB (Federação de Vôlei de Ruanda), através do vice-presidente, em contato com os empresários dessas jogadoras", contou Paulo de Tarso à coluna.

No masculino, um brasileiro e um cubano chegaram a treinar com a seleção, mas tinham nível técnico inferior ao dos jogadores locais e foram cortados. No feminino, o grupo que se apresentou tinha quatro brasileiras indicadas por Paulo de Tarso. Em comum, elas não tinham passagem por seleção, estavam sem mercado na Superliga e não tinham quaisquer relações com Ruanda até então.

Eram elas: Aline Wime (oposta de 34 anos que antes estava em Israel), Bianca Moreira Gomes (ponteira de 41 anos com mais de 20 clubes do mundo todo no currículo), Mariana Barreto (levantadora de 28 anos com passagem por clubes como Brasília e Valinhos) e Tainá Caroline (central de 28 anos que estava há sete anos afastada do vôlei).

"São jogadoras que nunca tiveram chance de servir uma seleção nacional e que estavam começando uma história para realizar um sonho de, quem sabe um dia, jogar uma Olimpíada. Não é um campeonato apenas, o plano era uma preparação a longo prazo que está sendo interrompida por um processo burocrático, onde elas são totalmente inocentes", argumenta o treinador.

Com Aline e Bianca como destaques, Ruanda estreou na competição com duas vitórias, sobre Marrocos e Nigéria, times que historicamente são mais fortes. Aí começou uma disputa política. O técnico da Nigéria apresentou queixa alegando que as quatro brasileiras estavam irregulares, fato confirmado pela Federação Internacional de Vôlei (FIVB), que atestou que elas estavam "inelegíveis", sem detalhar o motivo.

Procurada pela coluna, a FIVB explicou que, após uma investigação imediata, "observou que essas jogadoras não parecem ter Ruanda como sua federação de origem e, como tal, não seriam elegíveis para jogar por essa seleção nacional". A federação também ressaltou que não fará outros comentários até uma decisão final do seu Painel Disciplinar.

O processo de mudança de nacionalidade esportiva é complexo, depende de diversas variáveis, mas passa por troca de documentos entre a confederação de origem, no caso a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), e a de destino, a FRVB, de Ruanda. A CBV e a FIVB, comandada pelo brasileiro Ary Graça, têm péssima relação.

No mesmo documento em que atestou que as quatro brasileiras estavam inelegíveis, a FIVB suspendeu a seleção de Ruanda, o que fez o time ser desclassificado do Campeonato Africano que sediava. O fato irritou os dirigentes locais, que se sentiram ofendidos. A imprensa ruandense chegou a noticiar que o governo do país determinara que todos os visitantes fossem embora em 24 horas, mas, com dois dias de atraso, o torneio foi retomado com semifinais e finais no domingo. Sem a participação de Ruanda, Camarões faturou o tri.

A repercussão do episódio, porém, incomodou o presidente Paul Kagame, descrito assim por uma reportagem recente da agência de notícias alemã DW: "um homem que busca objetivos arrojados para o desenvolvimento do país, mas que, ao mesmo tempo, não permite opiniões diferentes das dele".

O Human Rights Watch (HRW) disse, na mesma matéria da DW, que Kagame, no poder desde 2000 —ou de 1994, de forma não oficial— instalou um regime de terror: "quem duvida da leitura oficial é perseguido". Em 2016, o UOL Esporte viajou a este país, que tem notável tradição no ciclismo, dentro dos padrões de um país da África Ocidental.

No caso do vôlei, após a repercussão das acusações que pairaram sobre o time de Ruanda, Kagame ordenou a instauração de um inquérito para encontrar os responsáveis pelas supostas irregularidades. Ontem (21), Jean de Dieu Bagirishya, vice-presidente da federação de vôlei foi detido, segundo um porta-voz do governo disse à BBC, por ser "suspeito de ter usado documentos falsos no exercício de suas funções". Ele ficará detido até a conclusão das investigações, o que deve acontecer em cinco dias.

Paulo de Tarso diz que está tranquilo e que negocia sua permanência na seleção de Ruanda para o restante do ciclo olímpico. "Não assino nenhum tipo de documento por nenhuma atleta, tampouco pela federação. Quanto às jogadoras, tenho absoluta certeza que elas são inocentes. O tempo todo Ruanda assegurava para nós que estava tudo certo. Mas não acompanho, não tenho autonomia e nenhuma responsabilidade sobre o processo burocrático que acontece fora da quadra", alega.