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Olhar Olímpico

REPORTAGEM

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Sorriso, coragem e companheirismo marcaram trajetória de Ruth no basquete

A ex-pivô Ruth ao lado de Magic Paula - Divulgação/CBB
A ex-pivô Ruth ao lado de Magic Paula Imagem: Divulgação/CBB

14/04/2021 04h00

Sentada à beira de uma quadra vazia, com os óculos pendurados na tradicional camisa polo, Ruth dá seu recado. "Confie no seu professor, no seu técnico. Tirando pai e mãe, não tem outro que quer tanto que você consiga seus objetivos. Nunca deixe que ninguém fale para você que você não é capaz. Você é capaz de chegar onde você quer".

O vídeo, uma entrevista feita por um professor, que pretendia exibi-la para os alunos de uma escola pública de Três Lagoas, passou a circular no Whatsapp desde que, ontem (13) pela manhã, o enorme coração de Ruth Roberta de Souza parou de bater. Ela tinha 52 anos e estava há duas semanas internada com covid na mesma Três Lagoas de onde ela saiu rumo ao desconhecido para jogar basquete, para onde voltava com o carro abarrotado de presentes natalinos, e onde passou a cultivar o sonho, nunca alcançado, de ser técnica da seleção brasileira.

Menina, jogava na quadra da escola em Três Lagoas quando foi vista por um irmão da técnica Maria Helena Cardoso, já uma referência no basquete brasileiro, que a convidou para jogar em Piracicaba. Ruth encarou seus medos, deixou a família e seguiu rumo ao interior de São Paulo, aos 15 anos. A partir de então, passou a cultivar uma relação de mãe e filha com a treinadora.

"Falar da Maria Helena é muito fácil para mim. Ela me ensinou tudo o que eu sei hoje. Me ensinou a ser o que sou. Tudo que sou hoje, devo a ela, que teve muita paciência comigo", contou Ruth em uma entrevista ao Painel do Basquete Feminino, em 2009.

A verdade é que nem sempre Maria Helena teve paciência. Certa vez, na Rússia, a treinadora pediu que as jogadoras, uma depois da outra, executassem a bandeja com a mão esquerda. Ruth fez com a direita uma, duas, três, quatro vezes, por mais que a treinadora reclamasse. Maria Helena estourou e mandou Ruth sair da quadra e ficar um tempo olhando para a parede. Contrariada, Ruth depois se recusaria a voltar de ônibus com o grupo para o hotel. Emburrada, voltou a pé e teve que aguentar zoação quando o ônibus passou por ela no caminho.

O episódio virou lembrança obrigatória sempre que a geração mais vitoriosa do basquete feminino brasileiro se encontrava. "Ela era muito alegre, era muito gostoso ficar perto dela. As piadas, as brincadeiras, o sorriso que ela tinha. Era um sorriso único, aquele jeitão que ela tinha", lembra Janeth, que jogou com Ruth nas seleções de base, em clubes e na seleção brasileira.

Ruth - Reprodução - Reprodução
Ruth, campeã mundial de basquete com a seleção brasileira
Imagem: Reprodução

"A última vez vez que a gente se falou foi antes de ela se internar, em fevereiro. Mandei mensagens pra ela, a gente riu um pouquinho, lembrando da nossa juventude. A gente tinha a mesma idade, sempre esteve muito perto, sempre conversava, contava piada, ela sempre foi muito divertida. Ela sempre tinha história para contar. A gente brincava que ela aprendeu a jogar basquete jogando coco na boca de jacaré. Essas brincadeiras bobas, sabe? Fica uma lembrança boa."

Magic Paula já era famosa quando Ruth apareceu toda tímida para jogar em Piracicaba e lembra que, quando a companheira começou a ganhar algum dinheiro, passou todo Natal enchendo o carro de presentes para levar para a família na tradicional volta para casa no fim do ano.

"Uns quinze dias antes de ela ser internada, ela me mandou um áudio sempre com aquilo de: 'Dona Maria, tá tudo bem?' [Magic Paula se chama Maria Paula]. Às vezes, ela sumia, mas você tinha certeza que ela ia mandar mensagem. Às vezes, ligava no sítio e avisava que tava vindo. Quando meus pais eram vivos, tinha uma proximidade com minha família, passava na casa dos meus pais. Ela sempre pensou mais nos outros, menos nela", diz Paula.

Dentro da quadra também era assim. Enquanto Paula, Hortência e Janeth apareciam nas estatísticas de pontos e nos melhores momentos exibidos na TV, Ruth era quem estava no garrafão se acotovelando pelos rebotes. Era a pivô, sempre conhecida pelo corpanzil, que fazia os bloqueios para as estrelas brilharem.

"O simples tava bom para ela. Ela não precisava de muito para estar feliz, viver. Ela tinha um humor meio inteligente, que cutucava. Ela era simples. Era uma pessoa que não queria mais do que ter os amigos, ficar perto da família", conta a Magic.

Ruth no Pan - Divulgação/CBB - Divulgação/CBB
Ruth recebe medalha do Pan de 1991 das mãos de Fidel Castro
Imagem: Divulgação/CBB

Entre o Mundial de 1986 e a Olimpíada de Atlanta, quando o Brasil foi prata, Ruth serviu a seleção brasileira durante 10 anos. Foi campeã do Pan de Havana, quando a seleção brasileira encantou Fidel Castro, quase pôs tudo a perder errando um lance livre decisivo no Pré-Olímpico de Vigo, em 1992, que classificou o Brasil para sua primeira Olimpíada no basquete feminino, e era a pivô mais velha da equipe campeã mundial em 1994.

"Uma coisa que me marcou muito no Mundial foi uma reunião que fizemos somente entre nós, as pivôs. Nos encontramos no quarto da Alessandra e da Cíntia e fizemos um pacto de jogarmos como nunca, para acabar com aquela história de que 'no Brasil não tinha pivô'. Acho que só quem participou dessa reunião sabe disso. Não contamos para ninguém. E deu certo, pois o resultado todo mundo conhece", contou Ruth na entrevista de 2009 ao Painel do Basquete Feminino.

Por clubes, Ruth jogou na Unimep de Piracicaba, no BCN Piracicaba, no BCN Osasco e Unimed de Araçatuba. Aposentou-se cedo, no fim dos anos 1990, e voltou rapidamente para Três Lagoas, onde passou a ser professora da escolinha municipal de basquete. No vídeo gravado na quadra da cidade, ela deixou seu último recado:

"Devo muito a Deus, porque consegui chegar à seleção e fui oito anos titular absoluta da seleção brasileira. Isso foi muita dedicação. É bacana, mas tem muito choro, muita dor, muita vontade de desistir. Mas você tem que saber onde você quer chegar. Isso é o mais importante para você vencer na vida".