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Olhar Olímpico

Falta de apoio e de perspectiva ameaçam carreira de promessa do ciclismo

Paola Reis foi prata no Pan - Abelardo Mendes Jr/Rede do Esporte
Paola Reis foi prata no Pan Imagem: Abelardo Mendes Jr/Rede do Esporte

08/08/2020 04h00

Nem o Comitê Olímpico do Brasil (COB) nem as confederações falam disso publicamente, mas as áreas técnicas sabem diferenciar bem os atletas que, se dedicando, podem no máximo se classificar aos Jogos Olímpicos e aqueles que têm talento suficiente para serem medalhistas olímpicos. Paôla Reis, 21, está no segundo grupo. Bem treinada, ela tem chances reais de brigar pelo pódio em Tóquio no BMX. O problema é que a baiana e a Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) não se entendem sobre de quem é a culpa por ela treinar pouco e numa pista cheia de buracos.

A CBC diz que dá oportunidades para Paôla, melhor brasileira no ranking mundial do BMX Racing, que ela não aproveita porque não se compromete com os treinamentos. Já ela alega que vira e mexe desiste do esporte porque não recebe mais oportunidades. Na falta de entendimento, perdem ambos e perde o esporte brasileiro.

Entre Paôla e a CBC está o técnico Leonardo Gonçalves, que formou a ciclista em um projeto social próprio em Salvador e a transformou na melhor do país no BMX, mesmo em condições precárias. Diversas vezes ele enviou e-mail à CBC e ao COB avisando que estava desistindo da atleta, e todas as vezes voltou atrás. Para pagar uma cirurgia urgente pela qual ela precisava passar, vendeu suas bicicletas importadas e encerrou a carreira de ciclista. É ele quem tenta arranjar um casamento entre Paôla e o esporte de alto rendimento. Por ela e pelo sonho pessoal de ser um técnico olímpico.

A relação desgastada entre Paôla e CBC ganhou um novo capítulo quando o gestor de alto rendimento da entidade, Fernando Fermino, deu entrevista ao site Olimpíada Todo Dia dizendo que o objetivo da confederação em Tóquio era uma final olímpica no BMX. A ciclista baiana ficou incomodada.

"O apoio que a CBC tem me oferecido não é o suficiente para fazer uma final de Mundial, nem em etapas de Copa Mundo. Como vou fazer final olímpica?", questiona Paôla, que é a 12ª do ranking mundial depois de fazer duas finais de Copa do Mundo no ano passado. Em 2019 ela ainda foi prata nos Jogos Pan-Americanos de Lima, campeã brasileira e quarta colocada no Campeonato Pan-Americano.

O BMX Racing é disputado numa pista de supercross, diferente daquelas de bicicross populares no interior de São Paulo, de Minas e do Paraná. Com gates de largada a 8 metros de altura e obstáculos mais altos e largos, uma pista de supercross só pode ser utilizada por atletas de alto rendimento. No Brasil há duas delas: uma em Londrina e a de Deodoro, no Rio, utilizada pela Olimpíada e desde então praticamente desativada.

Paôla só conhece a pista olímpica por foto. Sua realidade é outra. "O meu normal do dia a dia é treinar aqui no bairro em uma ladeira disputando com os carros e sendo puxada com uma moto para ter a sensação de velocidade. A pista de Salvador fica localizada na praia, venta muito e a plataforma de largada é de 1,5m de altura", ela explica.

"Eu cheguei a desistir de disputar uma Olimpíada e informei a eles (à CBC e ao COB). Não tenho a estrutura necessária para treinamento e consegui muitos resultados para o Brasil. Acredito que poderia conseguir chegar mais distante se treinasse com estrutura profissional. Sou atleta profissional com estrutura de treinamento de amadora", ela reclama, dizendo que sua prata no Pan poderia ter sido ouro se tivesse treinado numa pista oficial.

Outro lado da verdade

É fato que, para a posição que ocupa no ciclismo mundial, Paôla treinou muito pouco ao longo da carreira em uma pista de supercross. Mas também é verdade que diversas ela recusou oportunidades oferecidas pela confederação e pelo COB. No ano passado, deixou de ir ao Chile para treinar e competir porque havia brigado com o treinador. Depois, em janeiro, perdeu a chance de carimbar passaporte em Tóquio ao simplesmente não aparecer no aeroporto para ir a uma Copa do Mundo na Austrália. Segundo ela, porque recebeu a notificação do visto negado na semana da viagem e "não daria tempo de solicitar outro". Como foi utilizado dinheiro público e a passagem não foi utilizada, ela precisa reembolsar o COB e a CBC pelo prejuízo.

A confederação diz que Paôla recusou diversas oportunidades. Em 2018, de acordo com a CBC, foi proposto a ela treinar no centro de desenvolvimento do ciclismo da UCI, na Suíça. Mas, segundo a entidade, o Leonardo "proibiu a ida dela alegando que ela só iria se ele fosse junto". Naquele ano, Paôla treinou dois meses na Europa antes do Mundial.

Pista de bicicross de Salvador - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Em 2019, Paôla fez cinco viagens para disputar as 10 etapas da Copa do Mundo (sempre duas por final de semana, na mesma pista), bancada pela CBC em duas delas. Graças à confederação, também foi aos Estados Unidos e à Bélgica. Os patrocinadores individuais (governo da Bahia e Bahiagás) bancaram as demais viagens. Ao evento de Tóquio, teria apoio do governo da Bahia para ir, mas seu técnico alega que a confederação não entregou a papelada para o visto e não queria a presença dele.

Muito perto da vaga olímpica como melhor brasileira do ranking mundial, Paôla desistiu de ser atleta, a ponto de não apresentar documentos para receber a Bolsa Pódio - ela teria direito a R$ 8 mil. "Joguei tudo para cima por não aguentar mais a falta de estrutura. Estava vendo a hora que eu ia me machucar bastante. Briguei com meu treinador porque não queria mais arriscar a vida", diz ela, que treina numa pista cheia de buracos.

"Reconhecemos as limitações da pista de Salvador e fizemos convites para que a atleta pudesse treinar na pista de Supercross de Londrina, que segue características olímpicas. Mas o convite foi recusado pela atleta por estar fora de forma, sem o devido acompanhamento do seu treinador", explicou Fermino, gestor da CBC, ao blog.

A confederação também diz que "todos os atletas integrantes da Seleção Brasileira de Ciclismo sempre foram apoiados de maneira igualitária, sem diferenciação pela CBC ou COB" e que o técnico da seleção é o francês Thomas Allier, que "está à disposição para atender todos os atletas e treinadores que integram a Seleção Brasileira". A confederação chegou a pagar os salários do técnico de Anderson Ezequiel, o Andinho, melhor brasileiro do ranking mundial masculino (é o 20º), mas já não paga mais. Leonardo reclama que nunca recebeu "nem um centavo" pelo seu trabalho.

Tem solução

A boa notícia é que Paôla está de novo disposta a ir à Olimpíada. E a CBC e o COB dizem que estão dispostos a apoiá-la. Na semana passada, depois de o Olhar Olímpico enviar perguntas à confederação, Paôla foi convidada para uma conversa que vai acontecer na segunda (10). O comitê e a confederação prometem auxiliá-la caso, por oito semanas, dois meses, ela treine com o comprometimento de um atleta olímpico.

Será a confirmação de que ela está mesmo disposta a ser uma profissional do ciclismo. Por causa da pandemia, as pistas brasileiras de bicicross estão fechadas, com poucas exceções, uma delas a de Salvador - outra, de Caraguatatuba (SP), também próxima à praia. A de Londrina, de supercross, segue fechada, assim com a olímpica do Rio. A única alternativa seria levar Paôla para Portugal, para onde devem ir Renato Rezende (21º do ranking) e Priscilla Stevaux (14ª). Mas, sem treinar há muito tempo, la não tem condições de pedalar numa pista "olímpica" como de Portugal.

A tendência é que, se Paôla mostrar comprometimento, ela também seja enviada a Portugal para treinar, permanecendo no exterior parte do tempo até a Olimpíada. Ela tem 1.008 pontos no ranking mundial, contra 985 de Priscilla Stevaux, sorocabana que disputa a única vaga brasileira, conquistada pela soma dos pontos das duas e de Julia Alves, a 24ª da lista.