Topo

Olhar Olímpico

Abusos que levaram atleta à morte reacendem debate sobre "preço da medalha"

Tri atleta sul-coreana Choi Suk-hyeon - Handout/International Triathlon Union/AFP
Tri atleta sul-coreana Choi Suk-hyeon Imagem: Handout/International Triathlon Union/AFP

07/07/2020 12h00

Qual o preço que se aceita pagar por uma medalha? A discussão, reacendida globalmente pelo documentário Atleta A, da Netflix, também tem dominado o noticiário esportivo da Coreia do Sul depois da morte de uma jovem triatleta que alegava sofrer diversos tipos de abusos físicos e psicológicos. Ontem (6), ex-colegas dela foram à Câmara dos Deputados e confirmaram as alegações feitas por Choi Suk-hyeon e ignorada pelas autoridades.

Choi foi encontrada morta no dia 26 de junho, dia em que tirou a própria vida. Desde então, a Coreia do Sul iniciou um debate público sobre a imposição de linhas claras sobre abusos. A triatleta treinava na equipe amadora da cidade de Gyeongju e, em sua última mensagem de texto para a mãe, pediu que esta expusesse "o crime dessas pessoas", no que parece ser uma referência aos seus agressores.

Nos últimos meses, Choi havia apresentado queixa contra seu treinador, um terapeuta e dois colegas mais velhos em Gyeongju. A Federação de Triatlo e o Comitê Olímpico da Coreia do Sul nada fizeram após as acusações dela, que havia sido bronze no campeonato asiático júnior de 2015. A polícia da cidade de Gyeongju até encaminhou o caso ao Ministério Público, mas Choi morreu antes que os acusados fossem sequer ouvidos. O Comitê Olímpico diz que havia contratado uma investigadora.

Em um caso que se assemelha ao seriado 13 Reasons Why, da Netflix, Choi gravava arquivos de áudio quando sofria abuso físico ou verbal de seus treinadores e dos colegas de equipe. Em um desses áudios, uma voz que seria de seu treinador diz para Choi cerrar os dentes e, na sequência, se ouve o barulho de um tapa.

Os áudios foram exibidos na televisão, o que causou ainda mais indignação no país. A história é perturbadora. Choi relata, por exemplo, que foi obrigada a devorar uma quantidade grande de pães como punição por pedir um refrigerante durante uma refeição da equipe. Em outra ocasião, forçada a ficar três dias sem comer porque estava acima do peso. Em um diário, escreveu que apanhava como cachorro e que chorava todos os dias.

São vários os relatos de abusos físicos. "Nossa equipe de triatlo na prefeitura de Gyeonggju era um império para o treinador e alguns atletas selecionados. Os abusos físicos e verbais eram ocorrências comuns. O treinador nos batia constantemente, e o capitão da equipe também era um valentão", disseram os dois ex-colegas de Choi que concederam entrevista coletiva na Câmara, mas não tiveram os nomes e os rostos divulgados pela imprensa.

De acordo com a agência de notícias Yonhap, os dois colegas também alegaram que o terapeuta os assediava sexualmente, e este teria dito: 'Vou levar (Choi) Suk-hyeon ao suicídio'". Um deputado, que organizou a entrevista coletiva, disse que conversou com outros seis atletas que fizeram parte da equipe e ouviu que um teve o dedo da mão quebrado depois que o treinador o chutou. Outro teve o tímpano perfurado por um tapa na cara. Mesmo menores de idade, eles eram forçados a beber bebidas alcoólicas em excesso, para passar mal e se "acostumarem" com o desgaste de uma prova.

"Os problemas profundamente enraizados do abuso no mundo esportivo da Coreia do Sul mataram Choi. Nas sombras das imensas realizações do país no esporte, encontra-se o regime severo de treinamento que justifica a violência, desde que produza medalhas", disse ao jornal Washington Post Huh Jung-hoon, professor de ciências do esporte na Universidade Chung-Ang.

Mas o problema é universal. No mês passado, a Suíça demitiu duas treinadoras bielorrussas de sua seleção de ginástica rítmica por abusos semelhantes. No Brasil, a seleção permanente de ginástica artística feminina deu resultados esportivos, mas gerou inúmeras queixas de ginastas que eram proibidas até de beber água. Hoje o Comitê Olímpico do Brasil (COB) trabalha para mudar essa cultura na modalidade.

Já nos Estados Unidos o documentário Atleta A escancara a profundidade do problema. O médico "bonzinho", que se opunha aos abusos psicológicos, se valia disso para abusar sexualmente das ginastas. Aquelas que relatavam os assédios não eram ouvidas nem por suas famílias, enquanto a confederação de ginástica agia para acobertar o problema.