Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

A vida sempre recomeça

Acordei com uma boa notícia. Ela me foi dada pela natureza ao redor. Veio na forma de flores e cores. As cerejeiras estão florindo. Um espetáculo que dura apenas algumas semanas por ano e que, talvez por isso mesmo, é arrebatador. Parte de sua beleza reside na consciência de que vai acabar. Assim como a vida. Assim como tudo o que conhecemos e amamos. Assim como a Terra, a Lua e o Sol. Vai acabar, pessoal.

Outro dia passou por mim uma frase atribuída a Nicolai Gogol, autor russo que nunca li. Mas talvez devesse porque a frase me disse muita coisa: a obsessão humana com propósito é apenas uma distração do absurdo da existência. Olho meus cachorros correndo felizes pelo gramado e penso que a felicidade vem da ausência de propósito. Eles apenas são. Não têm objetivos, não querem ser eficientes, não estão em busca de performance, não se relacionam por custo-benefício.

Isso que chamamos de humanidade a fim de nos destacarmos da natureza talvez seja um equívoco. O modelo político-econômico vigente nos diz que se não formos eficientes, se não desempenharmos da forma esperada, se não encontrarmos um propósito, bem, então somos um fracasso.

Esse modelo de pensamento chegou, claro, aos campos de futebol. Tática hoje é sinônimo de eficiência e desempenho. Um time que entra em campo sem ter o propósito de vencer a qualquer custo é um fracassado de saída. Jogamos para vencer, dizem os resultadistas. Pois eu não. Eu jogo para viver. Imaginem se haveria chance de surgir um Garrincha sob esse modelo. Jamais veremos outro enquanto a matriz ideológica for essa. Vitória deveria ser o resultado da implementação de valores outros; valores mais associados ao absurdamento que é existir um jogo como esse que amamos do que ao rendimento e à eficiência.

Claro que esse negócio de propósito, essa busca agora patrocinada por cursos de auto-descobrimento, vale apenas para uma parcela da população. À maior parte das pessoas esse luxo não faz sentido: é acordar antes do sol nascer, entrar no vagão lotado do metrô, gastar horas esmagado no transporte público e, como diz Françoise Vergés, "abrir as cidades" para que a turma que busca propósito possa ir à academia e depois comer suas torradas de avocado e beber seus lattes com leite vegetal antes de elas mesmas irem para o trabalho acreditando que fazem parte da elite dominante.

Enquanto minhas cerejeiras florescem - e o uso do pronome possessivo diz exatamente quem sou nesse esquema - armas são testadas em Gaza sobre os corpos de crianças e de suas mães. Armas com assinatura estadunidense, armas ainda não usadas em lugar algum, armas de última geração, armas engatilhadas pelo exército israelense. Seremos julgados por nossa omissão sobre o genocídio palestino. Somos a geração que olhou para o outro lado. A geração que fingiu que não viu e seguiu vivendo. A geração que olhou o abismo e votou pela aceleração rumo a ele.

Gaza é um teste. E, sob os olhos da austeridade neoliberal, nós passamos por ele. Nada fizemos, e isso indica para a meia dúzia de homens que comandam o mundo que eles podem seguir com seus planos de dominação. É a palestinização do mundo. Eles sabem que seu modo de vida acabará com a experiência humana na Terra mas acreditam que vão escapar para Marte. E essa frase, que até pouco tempo poderia ser usada em uma pornochanchada de ficção científica, é tão real quanto as cerejeiras que vejo pela janela da sala.

Mas eis o que é importante dizer sobre a vida: ela sempre recomeça. Esse fim de mundo que estamos vivendo vai ser, como disse um infectologista, lento, quente e fedorento. Mas a vida acha jeito de recomeçar. Talvez sem a nossa presença por aqui. A vida não é uma propriedade humana. Há vida nas rosas, nas abelhas, nos pássaros, na grama, nas formigas, nas borboletas, nas onças, nos peixes, nas cerejeiras em flor. Sairemos de cena tendo fracassado, mas a verdade é que poderíamos ter sido muito mais porque somos absurdamente incríveis. Uma espécie que fez o inimaginável. Fizemos música e poesia. Dançamos e amamos. Curamos e nos cuidamos como nenhuma outra espécie foi capaz de fazer. Que desperdício. Enquanto isso, as cerejeiras seguirão seu destino. E, durante três semanas do ano, reaparecerão para protagonizar o espetáculo do desabrochamento em flor, mesmo que não estejamos mais por aqui para testemunhar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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