Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Pelo fim da ideologia da 'boa-mãe'

Lourivaldo Ferreira da Silva Nepomuceno, de 35 anos, morreu prensado na linha lilás do metrô de São Paulo. A linha é privatizada e operada pela ViaMobilidade. Lourivaldo era trabalhador e estudante. Era também pai. Morreu porque a lógica da privatização obriga tratar o lucro como prioridade e vagões e estações lotadas, evidentemente, colaboram para o aumento do lucro. Trens ociosos e cheios de espaços fazem o oposto. No dia da morte de Lourival, como nos anteriores e nos subsequentes, a plataforma estava lotada e as pessoas se esmagavam para tentar entrar e sair. Lourival, gostem ou não, morreu de capitalismo.

Nesse dia das mães lembremos da mãe de Lourival e façamos uma oração para que ela encontre forças para seguir.

Lembremos das mães que vivem em situação de vulnerabilidade com seus filhos e que passarão o domingo nas filas dos postos de saúde. Das mães que podem pagar caro por um seguro-saúde mas passarão esse 11 de maio contratando liminares para obrigar a empresa a quem dão dinheiro todos os meses a pagar o tratamento oncológico de uma filha. Das 12 milhões de mães-solo que precisam sustentar sozinhas um lar e serão processadas por negligência caso aconteça alguma coisa com um de seus filhos enquanto elas estão trabalhando. Das mães que moram com os pais das crianças mas precisam trabalhar para servi-los: mesa posta, jantar, roupa lavada, sexo quando ele bem entender mesmo que ela não queira - que hoje chamamos de estupro.

Das mães periféricas que todos os dias observam seus filhos e filhas saindo para a escola e fazem uma oração para que não sejam assassinados por homens fardados que usam armas e balas pagas com o dinheiro dos nossos impostos. Das mães que precisam ir sozinhas a reuniões escolares, das mães que não queriam ter sido mães, das mães que gestaram depois de estupradas, das mães que querem largar tudo e sair correndo mas ficam mesmo que isso represente sua morte. Das mães trans que gastam seus dias atrás do direito de terem seu nome social e sua maternidade reconhecida pelo Estado. Das madrastas em relacionamentos heterossexuais que acabam tendo que absorver a negligência do pai biológico. Das mães lésbicas, das mães vítimas de violência obstétrica, das mães negras a quem foi negada quantidade decente de anestesia durante o parto, das mães estupradas enquanto pariam.

Das mães que colapsam, que não aguentam, que se desesperam, que desistem, que berram por ajuda sem serem escutadas.

Maternidade não é destino de mulher. Maternidade deveria ser escolha consciente. E deveria ser executada por um vilarejo, como diz o ditado. Onde está o vilarejo?

O presidente da República postou em suas redes sociais vídeo bonito e comovente sobre o dia das mães, sem uma linha sobre o aspecto social da maternidade. Nada. Zero. Onde está o vilarejo, Lula? Onde está o apoio social às mães? O aspecto poderia pelo menos ter feito parte de seu bonito vídeo.

Onde estão as creches públicas? As escolas? Os centros culturais nas periferias e favelas? Onde está a educação sexual que poderia impedir milhões de casos de abuso de menores por pais, tios, amigos dos pais etc? Onde está a licença-maternidade extensa e bem remunerada? Onde está o direito de interromper a gravidez indesejada? Onde está a fiscalização sobre pai de pagar pensão sem burlar a lei fingindo que ganha menos do que realmente ganha? Onde está o transporte gratuito para mães e gestantes? Onde está o vilarejo? Onde está o tecido social? Como enaltecer a família sem oferecer o mínimo às mães?

Maternidade não deveria ser sacrifício, mas a romantização do sacrifício é conveniente ao sistema. São as mães e as mulheres, afinal, que todos os dias reproduzem a força de trabalho da qual o capitalismo necessita para respirar.

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"Sabemos mais sobre o ar que respiramos, sobre os mares pelos quais navegamos, do que sobre o significado e a natureza da maternidade", escreveu Adrienne Rich em "On Women Born", infelizmente sem tradução para o português. "Maternidade é uma conquista que acontece primeiro através de um intenso ritual de passagem, físico e psíquico - gravidez e parto - e depois através do aprendizado do cuidado, que não vem por instinto".

Rich, mãe de três, lembra que a maioria das mulheres na história não se tornou mãe por escolha e que uma parcela ainda maior de mulheres perdeu sua vida trazendo uma outra vida ao mundo.

Dia das mães é dia para exigir que nossas mães possam existir para além de uma identidade congelada. Para que possam amar sem ter que rimar amor com dor. Para que não precisem se curvar a ideologia de que a boa mãe tudo aguenta sem reclamar e de que as melhores se anulam em nome da família. "Você parece sentir que precisa nos amar a todo o instante", disse a Rich um de seus filhos. "Mas não existe nenhuma relação na qual você ama a outra pessoa a todo os instantes". Rich escreve que ouviu o que o filho dizia e responde: verdade, mas espera-se de mulheres, e de mães especialmente, que elas amem dessa forma.

Aprendi a observar minha mãe desde pequena. Sabia exatamente quando ela estava triste, brava, melancólica, nervosa, feliz. Pelo olhar eu era capaz de distinguir seu estado de espírito. Quando ela estava bem, eu ficava bem. Quando ela estava mal, eu assimilava e me entristecia. Percebia que ela lutava contra a tristeza para seguir trabalhando em casa. Se ela parasse, a casa desmoronava. Meu pai, por outro lado, podia parar. Ele ouvia música, lia seus livros, via jogos de futebol, escutava páreos no Jockey, ia para o Jockey, se trancava no escritório para escrever. Não tenho memória de minha mãe ter esses espaços dentro de sua própria casa. E assim parecia ser a vida: mães estão constantemente ocupadas; pais não.

A "boa-mãe" é uma ideologia perversa e é nas costas desse sujeito que todo um sistema econômico se escora. O trabalho das mulheres e das mães: não remunerado, invisível, ignorado, maltratado, desprezado. A não ser, claro, no segundo domingo de maio. Nesse dia: te amo, mãe. Você é demais. Sem você eu nada seria. Obrigada. Viva. Toma aqui esse presente. Não era um liquidificador novo que você queria? Achei que ia amar esse aqui. Vamos comer? O que você fez pra gente hoje?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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