Milly Lacombe

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Por que escolha do nome Leão 14 não sugere respeito ao legado de Francisco

O ódio invejoso dos pobres contra os ricos. Ou, para ser bastante precisa e literal: "Os socialistas instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo devem ser comuns a todos e que sua administração deve voltar para os municípios e para o Estado".

Essas palavras são de Leão 13, que liderou a Igreja Católica entre 1878 e 1903, o Papa do período do auge revolução industrial portanto, quando a Europa estava mergulhada em revoltas da classe trabalhadora contra o estado miserável de opressão que os empresários impunham ao operários. Leão 13 adverte em sua encíclica - a carta pastoral que inaugura um papado - que a saída de igualdade para tantos conflitos seria prejudicial para os operários. Não apenas isso, mas seria injusta "por violar os direitos legítimos dos proprietários".

O trecho que destaco é revelador, mas a carta inteira é ainda mais.

Antes de mais nada, ele se apoia numa mentira: quem falava do sequestro da propriedade privada individual não eram os socialistas. O que a teoria socialista previa - e o comunismo prevê - é o fim da propriedade privada dos meios de produção. Seu Corolla seguirá sendo seu, assim como seu iPhone e seu apartamento no Guarujá. Quem se lambuza da mentira de que o comunismo vai confiscar a sua Yamaha é quem quer fazer circular medo na sociedade.

A encíclica de Leão 13 (deixarei o link para a íntegra do documento no final do texto) forma mais uma das bases teóricas para a construção do discurso neoliberal atual. Eu consigo escutar Pablo Marçal repetir as mesmas palavras de Leão 13 e poderia apostar que a equipe de marketing de Marçal seria capaz de reproduzir a Encíclica de cabo a rabo em sinal de apoio.

No documento publicado por ocasião da inauguração do papado de Leão 13 existem muitas frases que convocam os fieis e a sociedade a serem decentes com os operários, a escutá-los, a tratá-los bem. Acho que a alternativa seria bastante cruel: não tratar bem? Imaginem um Papa pregando qualquer coisa diferente de bons tratos. Então, me parece apenas razoável acreditar que esses trechos tenham sido escritos para disfarçar a real intenção da encíclica: a de evitar que os patrões seguissem sendo importunados por operários indignados com as condições de vida a que estavam sendo submetidos.

Leão 13 escreve que a igualdade proposta pelo comunismo é "a igualdade da nudez". E segue: "O homem deve aceitar com paciência sua condição; é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível". Ele explica, do alto de sua bondade, que foi a natureza que estabeleceu a diferença entre os homens e que dessa diferença nasce espontaneamente a desigualdade.

Esse trecho poderia ter sido escrito pelo discursista de Jair Bolsonaro facilmente. Leão 13 fala na dignidade dos "deserdados de fortuna" dizendo a eles diretamente que ninguém deve se envergonhar de ter que ganhar o pão com o suor do seu rosto - uma frase que Ludwig Von Mises, um dos fundadores do neoliberalismo, poderia aplaudir de pé.

Com palavras doces e gentis, Leão 13 vai construindo a ideia de que devemos aceitar nossa condição no mundo, trabalhar duro e sem nos envergonharmos e sempre com respeito à propriedade privada e ao patronato, uma gente que, afinal, não tem culpa de estar onde está. O Papa sugere que os operários negociem livremente com seus patrões salários justos (Michel Temer deve gostar bastante desse trecho), que o Estado proteja o operário - bem, depois desse discurso todo, esse trecho soa como esmola - e termina falando de caridade, o que diz muita coisa. O capitalismo como o conhecemos usurpa do trabalhador a possibilidade de uma vida digna e depois vem com a caridade como gesto final de humilhação. Caridade é diferente de solidariedade porque carrega poder e hierarquia.

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Muito tem sido dito sobre Robert Prevost, agora Leão 14, ter se colocado ao lado dos pobres e oprimidos durante sua vida. Acreditam que a escolha do nome sugere lealdade ao trabalho de Francisco já que Leão 13 teria sido um Papa também atento ao social. Acho realmente possível que alguns leiam a encíclica de Leão 13 e considerem que ele falou em nome dos desafortunados. Não é absolutamente a leitura que fiz, e por isso convido a todos e a todas que leiam a íntegra.

Entendo também a vontade desesperada de gostar de Leão 14 e de encontrar em seu passado motivos que nos oferecem alguma esperança. Gostaríamos que o trabalho de Francisco pudesse ser continuado, a despeito de toda sorte de exclusões que a Igreja ainda pratica com mulheres, LGBTQs e vítimas do abuso sexual de padres. Mas seria preciso manter os pés no chão e deixar de lado a necessidade de buscar a todo custo uma boia de salvação para o período que vivemos. "Só mesmo uma ilusão liberal para acreditar que a diferença vem sob a forma da tolerância e não sob a forma agonística do conflito", escreve Vladimir Safatle antes de pedir que aguentemos estoicamente o impacto das colisões.

Não temos como prever o papado de Leão 14 e vamos aguardar a publicação de sua própria carta pastoral para seguirmos na avaliação. Mas sabemos desde já que a escolha do nome nunca é em vão nas questões da Igreja Católica. Prevost não escolheu ser Francisco II afinal, o que teria aquietado muitos corações devotos. Falar de crise climática apoiando um suposto direito sagrado de bilionários seria repetir o duplo comando postulado pelo papado do Leão que o antecedeu. Definitivamente, não precisamos de um Papa assim nesse momento, e vou rezar para que Robert Prevost se separe de uma gestão nesses termos. Leia aqui a Encíclica de Leão 13 na íntegra, cujo título dado foi Rerum Novarum ("Das Coisas Novas"), e tire suas conclusões.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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