Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Fernanda Torres está rompendo com a estética patriarcal da sedução

Fernanda Torres, como escrevi aqui anteriormente, é um sentimento. E agora também um movimento. Um movimento que fala sobre nosso lugar de mulher no mundo.

Desde que foi dado a ela o abençoado exercício artístico de interpretar uma heroína da vida real, Fernanda começou a soprar feito uma ventania necessária em dia de verão. Ao interpretar uma mãe de família obrigada - como quase todas as mães - a suprimir seus desejos, sonhos, anseios, dores, cicatrizes e indignações em nome do bem-estar e da segurança dos filhos e das filhas ela foi tirando tudo do lugar. Em diferentes escalas, sendo a de Eunice Paiva um extremo, é assim a maternidade como a conhecemos dentro do patriarcado.

Na cerimônia do Globo de Ouro, Fernanda apareceu vestida em uma roupa fechada com um enorme decote nas costas. A estética do erotismo chamando o olhar para o lugar inesperado. A estética da memória que lembra uma das cenas mais marcantes de "Ainda Estou Aqui": a do banho quando ela é liberada do centro de tortura para onde foi levada por militares e capangas.

Agora ela se apresenta em Santa Barbara, na Califórnia, para mais uma entrevista do circuito de premiações vestida em uma roupa totalmente fechada da cabeça aos pés. Sai da plateia, vai andando pelo palco até seu lugar e senta-se ao lado do entrevistador, que a observa. Nessa hora, cruza uma perna sobre a outra e revela o decote que expõe, de forma inesperadamente sensual, sua pele: parte pequena da coxa, joelhos, pernas.

Dias antes vimos Bianca Censori entrar fechada em um casaco de pele no tapete vermelho do Grammy, testemunhamos Censori tirar o casaco e expor seu corpo nu ao lado de Kanye West, que a olhava com autoridade e parecia comandar as ações do corpo dela. Uma imagem desconfortável, nauseante e intrigante. Falava de liberdade ou de opressão? Se era de liberdade, ninguém entendeu nada. Se era de opressão, entendemos e repudiamos.

Corta.

Na ensolarada Santa Barbara, Fernanda sobe ao palco fechada em um figurino aparentemente tão opressor quanto o casaco de pele de Kanye West (foquemos no homem). Até que Fernanda cruza as pernas e tudo vira de ponta-cabeça.

A cruzada de perna dela se opõe as pernas abertas de Sharon Stone na cena clássica do cinema na medida em que rompe com a naturalização da estética da sedução formatada pelo patriarcado. A de Stone - ainda que arrebatadora - opera dentro dos contornos aceitáveis das regras desse jogo opressor e objetificante. Fernanda está prestes e rasgar o roteiro. Ela cruza uma perna sobre a outra e encara a audiência. Ela sabe o que está fazendo: está virando do avesso a estilização do desejo do olhar masculino. Está interrompendo, ainda que por instantes, o padrão criado para que a diferença de poder seja erotizada. Ela sorri um sorriso maroto. Seu corpo erótico tem 59 anos. Seu talento faz chorar mas também faz rir, e mulher que faz rir, diz a lenda, não sabe seduzir. Fernanda varre o mundo com sua arte, com sua inteligência e com a força de um tipo de sedução que talvez apenas as mulheres maduras possam alcançar. Fernanda faz uso de seu corpo, de seu erotismo, de sua autoestima para abrir frestas no teatro limitante do regime da diferença sexual. É um gesto e tanto a cruzada de perna dela. É uma ação feminista. É um movimento que Fernanda Torres coloca em circulação. Como não se apaixonar por ele?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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