'Torcida única é fracasso de inteligência e preguiça pedagógica'

Como corintiana eu não deveria me emocionar com uma declaração de amor ao rival, mas nem sempre é possível controlar emoções. Ou raramente é. Christian Dunker é uma das vozes mais fundamentais do debate público atual. Psicanalista, professor, comunicador, colunista do UOL e palmeirense. Fui atrás dele para falar da violência que estamos vendo no jogo que amamos e voltei com muito - muito - mais. Publico aqui a íntegra de suas respostas e aviso: é uma melhor do que a outra.
O futebol está mais violento hoje ou estamos falando de um tipo diferente de violência?
Acho que dentro de campo a violência diminuiu, ser caçado em campo como Pelé foi na Copa de 1966, ter que apelar para o Chicão para enfrentar a Argentina em 1978 ou coisas como vimos no Flamengo contra Cobreloa, na Libertadores da América não acontecem mais, de forma insidiosa e permissiva como antes. Na arquibancada acho que a violência também diminuiu, mas às custas do que eu considero um fracasso de inteligência e uma preguiça pedagógica, representados pelos clássicos com torcida única. Câmeras, punições ao time cuja torcida exibe sua violência entre si ou contra o adversário tem um efeito. No entanto, será que este efeito representa uma redução do fator V (vale dizer, índice de disposição genérica a passar da agressividade para a violência)? Neste caso a oportunidade perdida para ensinar crianças, famílias e torcedores, inclusive os mais fanáticos a respeitar o outro parece ter deslocado a violência para os confrontos programados nos arredores dos estádios, nas rotas ou rodovias de acesso e ainda para o encontro desavisado entre camisas. Não consigo pensar que Estados onde a violência assume parte dos métodos e da política de governo, como em Goiás, tenhamos mais confrontos armados. Este processo parece estar mais em acordo com o progresso da gramática das milícias no país, consequentemente maior nos dos territórios já tribalizados. Neste caso a violência usa o futebol como pretexto. Na medida que as pessoas são grupalizadas segundo seu credo esportivo, é preciso mostrar imaginariamente que "aqui quem manda sou eu", um exercício fútil, como é fútil a maior parte dos motivos para assassinatos no país.
Ingressos caros, arenas elitistas, entretenimento classista. É exagero dizer que o futebol está se distanciando da população e, se a análise for adequada, o que isso pode ter a ver com a violência que estamos vendo?
O futebol, como tantas outras coisas no Brasil, se organiza cada vez mais em estrutura de condomínio. Arenas exclusivas, sócio torcedor, estéticas excludentes. Isso tudo concorre para o efeito de contra-muro, onde aqueles que se sentem do lado de fora se manifestam, muitas vezes sem se dar conta, contra a exclusão. Mas há outra violência que vem das torcidas organizadas, que são constantemente criminalizadas em vez de "organizadas". Assim como boas escolas são aquelas que se pensam como comunidades, os clubes deveriam criar suas próprias auto regulações com as organizadas. Muitas já exercem seu poder discricionário à base da violência e das manifestações intimidativas. Temos aí um ótimo laboratório para pensar práticas de pacificação do país. Mas isso implica chamar educadores, psicólogos e assistentes sociais para tornarem as torcidas verdadeiros movimento sociais, com ademais algumas acabam funcionando em momentos mais agudos, onde a violência de Estado se pronuncia mais abertamente. Mas aqui vigora aquela regra de que ou o negócio pode empreitar relações, práticas e paixões de modo selvagem ou então o Estado se demite, para intervir depois colhendo os efeitos de sua demissão.
O que é o futebol para você?
Desde pequeno via no futebol uma espécie de grande metáfora da vida, um pequeno mundo que replicava ponto a ponto as regras deste mundo particular que é o Brasil. Quase me profissionalizei e senti de longe o que é a vida de um jogador, ou seja, uma soma de imponderáveis: contusões e dores permanentes, contingências de escalação e sorte de estar naquela posição na hora que passa o olheiro, que vem a peneira ou que aquele técnico decide a constelação do time. Há muita exploração de boa fé e muito sofrimento para a maior parte dos jovens que se dedicam a esta carreira, como grande sonho. É criminoso que cedo venha a escolha, como no meu caso, entre estudar e jogar. Todos os clubes deveriam manter escolas em todos os níveis e não só para atletas de futebol.
Mas é uma metáfora da vida porque ela te dá, a cada vez, certas cartas, melhores ou piores. E há sempre aqueles que largam atrás, os clubes pequenos, as várzeas, os times de interior. Mas não consigo pensar outro esporte onde nem sempre o mais forte vence. Não parece, mas um campo de futebol é uma imensidão metafísica. Um toque contingente, um erro coloca tudo a perder ou ganhar.
Assim como na vida você pode ser ou se achar um craque, mas só haverá vitória se você tiver um grupo. Ele é muito mais extenso do que aqueles que aparecem nos jornais e para a torcida. O futebol é como o cinema. Uma obra coletiva, envolvendo centenas de pessoas, múltiplos interesses, estrelas e ilusões de toda sorte. Parece ser obra de arte única feita pela mão mágica e invisível do diretor. Tudo mentira. Ainda que, como na vida existam técnicos que tiram o melhor de você. E outros conseguem tirar o pior.
No futebol como na vida não basta talento. Se não transpirar muito nem vai ter a chance de fazer aparecer seus dotes e qualidades. No futebol, como na vida, a sorte faz parte, mas não decide tudo. Tem dia que faz sol, outro dia chove. Assim com na vida, você faz sua parte e às vezes chega na final, por seus méritos ou comprando o juiz. Como na vida, existem regras limitadas, 17 ao todo, mas ainda assim é possível trapacear dentro das quatro linhas. Ganhar é outro capítulo, aquele que diz respeito aos deuses, que antes nos ensinam a humildade, como vemos, dia após dia, nas declarações de nossos jogadores, no Mesa Redonda Futebol Debate. Conversa fiada, conversa miúda, conversa circular, futebol é a língua transversal do brasileiro e que bom, está se tornando também a das brasileiras. No futebol, como na vida escolher amigos e inimigos é parte decisiva.
Se você quer ensinar que diversidade é um princípio ético incontornável observe como bons times sempre tem um ou mais cabeça de bagre, brigão, inconveniente, desastrado, azarado, quando não vários que fazem uma composição perfeita, sem que você saiba bem porquê. No futebol como casamento e no amor, ninguém sabe por que dá certo, mas todo mundo tem certeza de porque deu errado.
Na vida você pode mudar de país, de emprego, de cônjuge e até mesmo de gênero, mas estou para conhecer quem depois de consagrado e apaixonado mudou de time. Até mesmo os mais desleais, hipócritas e mesquinhos no futebol são fieis, quanto mais o time perde mais ele torce. Porque é nessa hora que o time precisa. Também na vida tem aquele que queria ser jogador, mas é um torcedor, comentarista, setorista de rádio ou gandula. Tem aquele que é jogador, mas queria ser cartola, árbitro ou dono do mundo. Goleiro com complexo de centroavante. No futebol a gente vê como a vida é injusta, mas também como facilmente ela poderia ser mais justa. Finalmente, para muitos o futebol é com lembramos de nossa história. Quantos anos tínhamos em cada copa, quando saímos da fila, os que torcem conosco e os que torcem contra, para muitos o futebol é uma narrativa pela qual a própria história pode ser lembrada. Quantos não foram e não serão enterrados com o manto de seus clubes?
Você acha que uma solução seria a gente educar clubes/dirigentes/torcidas a respeito do aspecto violento da masculinidade? Falar de questões de gênero, de como o machismo machuca homens também ao encorajá-los a essa violência desmedida, de como essas coisas estão na base da pancadaria que vemos crescer no futebol etc? Ou é uma ilusão pensar assim?
Ainda pesa contra o futebol sua história como jogo principalmente masculino, e não só por desinteresse das mulheres, mas por proibição, como com os negros. Isso mostra como ele é uma arena onde se testam e se evoluem transformações sociais. É justamente porque envolve a tênue linha de transição entre agressividade e violência que ele se presta a reformular práticas machistas, misóginas e a dar visibilidade para fatos, práticas e discursos que não aceitamos mais. Lembremos que foi apenas na Copa de 1970 que se introduziram os cartões amarelo e vermelho. O futebol é uma matriz de virilidade e por isso é um lugar onde a redução da violência pode ser enfrentada de maneira mais eficaz. Lembro-me da grande repercussão quando apareceu a torcida Gay do Flamengo, a Fla-Gay. É porque o futebol faz parte de nossas histórias de transformações que ele não deve ser olhado apenas como um caldeirão de Red-Pills, Incels cultivando suas masculinidades frágeis.
Por que o Palmeiras conquistou seu coração e o que ele representa na sua vida?
Venho de uma família onde a religiosidade ecumênica era regra, e eu fui assim aprendendo que acreditar que o Palmeiras é uma coisa mais complexa do que pode parecer. Meu pai e eu não nos dávamos nada bem, mas tínhamos uma coisa em comum. Uma coisa verde. Desde pequeno fui refletindo seriamente sobre a relação metafísica entre torcer e acontecer.
Torcer é um nome prosaico para o desejo, categoria fundamental para todo psicanalista. As grandes questões filosóficas podiam ser gradualmente encontradas dentro das quatro linhas. O ciclo cósmico da natureza admitia dois tipos de dias: aqueles nos quais o Palmeiras joga e os outros, mero tempo de espera e passagem. Gradualmente todas as minhas neuroses foram se atraindo e se condensando neste mistério arquetípico esverdeado. Ali tudo poderia ser permitido. Apostei meu cabelo contra o São Paulo e tornei-me conhecido na escola como "Careca". Como todo verdadeiro amor o desejo de torcedor se forma na penúria, no conflito e não sem sofrimento. Foi assim a longa travessia no deserto sem títulos durante os anos 1980. Foi assim depois da destruição do templo suspenso, nos anos 2010. As derrotas tinham um sabor de delírio de auto-referência. Devia ser porque tive pensamento insalubres, não fiz tal coisa ou porque tratei mal aquele outro. Talvez as pilhas do rádio, com aquele pequeno toque avermelhado. O Palmeiras é uma espécie de língua fundamental para a qual quase todas as outras podem ser traduzidas. A superstição, o dogmatismo e todo tipo de pensamento regressivo e infantil me sobrevém quando se trata do Palestra. Minha esposa (aliás descendente de italianos) e minha filha dizem que são palmeirenses "por procuração", pois prezam por algum humor dentro de nossa casa. Meus alunos temem pelo pior quando fazemos uma prova perto das finais do campeonato. Minhas alunas se revoltam quando mobilizo a prova de Santo Ancelmo para mostrar como a perfeição transcendente pode vir por intermédio do divino Deiverson. Quando explico as estruturas elementares de parentesco, Totem e Tabu vira peixe contra gavião e a vitória do soberano porco. Afinal se me dedico a ensinar na universidade é porque isso ainda se chama Academia. Todos acham o fim da picada quando digo que o Palmeiras é o único time à altura da ética trágica da psicanálise. Quando lembro que Sócrates foi o primeiro analista, e que seu discípulo Platão fundou a primeira Academia. Um mero ensaio para as que vieram depois, todas elas Verdes. Muitos me criticam porque estímulo preconceitos quando afirmo que em termos ontológicos os Outros são meros sofredores. Seguem a física de Aristóteles que lhes devolverá ao seu lugar natural, na segunda divisão. Acho que a última vez que chorei para valer, foi quando entrei pela primeira vez no Allianz Park. Naquele exato instante Gabriel Jesus sofreu um pênalti contra o Santos. Como cientista, doutor em Psicologia, defensor da ciência em luta contra o negacionismo, bem sei que os dois eventos não têm nenhuma relação causal entre si. Mas ainda assim, sinto como se fosse. Durante minha análise falava constantemente de futebol e pedia que este sintoma me fosse aliviado. Tudo mentira. Ele acabou por decretar, contra a regra máxima da associação livre em psicanálise, que não haveria mais futebol por ali. Mas isso foi antes da Libertadores. Também, o cara torcia para o Coritiba !!!!
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