Milly Lacombe

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Como acreditar em Anielle Franco sem cancelar Silvio Almeida

Estamos diante de um impasse. Pelo menos é o que parece, e esse texto, se bem sucedido, mostrará que não tem impasse nenhum.

O impasse: Aqueles que pedem que levemos a palavra da vítima a sério estão de um lado. Do outro, pessoas, a maior parte dela homens, que se mostram horrorizados com o tribunal popular que já condenou Silvio Almeida sem que a justiça tivesse sequer sido chamada para julgar a questão. Um massacre, dizem.

Vamos passo a passo para decifrar essa enrascada.

A ministra da igualdade racial teve seu nome vazado em um caso que envolve suposta importunação sexual que teria sido praticada por um outro ministro, o dos direitos humanos. Há mais mulheres que alegam terem sofrido assédio do mesmo ministro. A palavra delas, recebida pelo Me Too Brasil, ONG criada para acolher vítimas de crimes sexuais, não foi jogada ao vento como um desabafo irresponsável. Há relatos documentados, há detalhes, há embasamento que estão sendo colhidos há mais de um ano.

Anielle, ao ter seu nome vazado, passou a enfrentar o que toda mulher enfrenta ao denunciar: está sendo des-credibilizada. Essa é a única certeza que uma mulher tem ao fazer uma queixa formal sobre violência de gênero: se nosso nome vazar, teremos nossas vidas devassadas. É por isso que uma minoria denuncia. Muitas de nós simplesmente não queremos passar por isso e achamos melhor apenas seguir nossas vidas com nossos traumas e com tudo o que eles fazem com a gente no dia a dia.

Se outros nomes vazarem, essas mulheres sofrerão o que está sofrendo Anielle Franco.

Trata-se de uma artimanha do patriarcado para que fiquemos caladas.

Outra artimanha é a tentação de colocar o caso na chave da redução absoluta: "Ele (o acusado) está sendo condenado antes da hora e sem ter passado pelo devido processo legal".

Vamos devagar.

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As denúncias de crimes sexuais contra Boaventura de Souza Santos, renomado acadêmico também bastante respeitado pelo campo progressista, se mostraram verdadeiras e até hoje há quem acredite que ele foi injustamente massacrado já que sua obra é imprescindível para o debate público.

No caso de Boaventura, a primeira denúncia contra o professor tinha muita consistência. Chegaram outras porque uma denúncia com voz de mulher não basta para que a opinião pública olhe para o agressor mais do que para a vítima. E o campo feminista falou sobre elas dando crédito às vítimas, como deve ser feito. E aqui temos um ponto sensível: Dar crédito à vítima sugere, claro, dizer que o homem que nega não está dizendo a verdade. E essa é a particularidade dos crimes sexuais. O inverso se aplica: acreditar na palavra do homem que diz "não fiz" é desacreditar a palavra da mulher que relata o abuso.

Parece que estamos invertendo um princípio básico do direito: a presunção de inocência passa a ser a presunção de culpa. Mas vejam que tinhoso: não há como sair desse dilema se levamos a palavra da vítima de crimes sexuais em máxima consideração e atribuirmos a ela, com a proteção da lei, um peso maior do que o peso da palavra do acusado. A palavra da suposta vítima tem peso de prova, e assim deve ser apreendida.

Observem: não temos uma epidemia de denúncias falsas no Brasil. Temos uma epidemia de crimes sexuais. Esse contexto não pode ser perdido de vista.

Isso quer dizer que podemos cancelar o direito à defesa para crimes sexuais? Não, obviamente.

Quer dizer que os fatos são esses até aqui e que o histórico desse tipo de crime pede que foquemos a investigação no agressor e não na vítima. Crimes sexuais não devem ser analisados como outros tipos de crime e essa especificidade não é entendida por muitos.

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Não se trata de um massacre nem de um cancelamento do professor Silvio Almeida, uma das vozes mais importantes para o campo progressista brasileiro. Se trata de olhar para a situação com as lentes corretas.

A chance de Anielle Franco - ativista dos movimentos negros, letrada em todas as implicações que uma denúncia como essa tem - e de mais mulheres estarem mentindo é muito baixa, para não dizer inexistente. Mas, sim, mesmo que a chance de as acusações não serem verdadeiras sejam minúsculas elas precisam ser consideradas para que um inocente não seja injustiçado.

Mas e aí? O que fazemos com a presunção de inocência Silvio Almeida diante dessas colocações?

Entendemos que ele precisa se recolher para avaliar sua linha de defesa. Entendemos que haverá um inquérito, um conjunto probatório, um processo, um julgamento e um veredito. E que, até lá, ele é inocente.

Entendemos que ele precisa de tempo e de reflexão. Entendemos também que talvez nem ele mesmo, forjado nas estruturas da misoginia, consiga compreender a gravidade dos atos que talvez tenha praticado.

Entendemos que ele deve estar com raiva por ser o único até aqui demitido por uma suspeita que não demitiu mais ninguém nesse governo atolado em denúncias de crimes sexuais. Entendemos que ele, melhor do que ninguém, tem conhecimento do papel desempenhado pelo racismo no que ele está vivendo.

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Entendemos que Silvio Almeida deve estar revoltado porque talvez saiba que interesses maiores revelaram as acusações no momento em que sua pasta estava atuando em nome de uma nova comissão da verdade e contra a privatização dos presídios.

E entendemos que uma alternativa - quase nunca usada - é confessar e buscar se corrigir. Eu gostaria de saber o que aconteceria com o homem que, em vez de sair atirando depois de uma acusação desse tipo, em vez de destruir a vida da vítima, em vez de criar teatros para passar a ideia de que foi consentido dissesse: eu errei. Eu fiz coisas indizíveis das quais me arrependo. Entendo a dor que causei. Sou fruto de uma sociedade machista e misógina e dedicarei minha vida a destruir esses preconceitos em mim.

Eu apostaria que ele seria acolhido pela maioria de nós.

Mesmo alguém como Boaventura de Souza Santos, ao admitir os abusos, o fez justificando os crimes como sendo erros de homens de uma certa época. Uma espécie de reconhecimento sem nenhum arrependimento. Não resistiu à tentação de seguir na posição de vítima. Por que só eu se todos fizeram/fazem? É esse o sentimento comum aos homens flagrados em práticas de crimes sexuais. Ah, para! Todo mundo já fez e só eu pago a conta?

Nessa hora alguém diz que nunca abusou de mulher nenhuma. Com uma certeza implacável. E eu fico intrigada porque se nós, mulheres, muitas vezes somos abusadas sem nos dar conta de que estamos sendo e vamos identificar o que passamos apenas muitos anos depois como é que um homem que vive na mesma sociedade machista em que eu vivo pode ter tanta certeza de nunca ter cruzado a fronteira? Prefiro muito mais os amigos que me dizem: Milly, já fiz coisas das quais me arrependo. Hoje sei. Não vou repetir.

Admitir o comportamento inapropriado e ir atrás de ajuda para não repetir o malfeito nunca é um recurso usado por acusados. Vivemos numa sociedade machista e misógina que cria meninos para que eles acreditem que o corpo de uma mulher pode ser tocado a qualquer momento sem consentimento. Silvio e tantos outros são fruto dessa sociedade. Existe a necessidade de enxergarmos os casos de violência de gênero sob esse prisma. Somos uma sociedade adoentada. Silvio Almeida, mesmo se condenado, não é um monstro. Monstruosa é a sociedade que forma homens e mulheres com papeis de gênero rígidos e colocando o masculino como superior ao feminino.

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Para mulheres é especialmente torturante que o ministro dos direitos humanos esteja envolvido nesse tipo de acusação porque, se for verdade, o recado que recebemos é que não somos, então, humanas. Estamos abaixo dessa linha.

Queremos acreditar que Silvio Almeida é inocente. Muito. Mais do que talvez devêssemos. Trata-se de um ícone. Mas, ao escutar Anielle Franco falar, abaixamos a cabeça, caímos de joelhos e choramos um pranto de desespero. Não sabemos sobre a culpabilidade de um de nossos herois, mas sabemos como são nossas vidas. Em casa, no trabalho, no transporte público, nas ruas. Nossos corpos estão pra jogo. Para extremistas de direita e para caras bacanas, admiráveis, brilhantes e amigos.

Falar que as acusações são graves e que a palavra da vítima precisa ser acolhida como prova não é massacrar ou condenar antecipadamente ninguém, mas essa simplificação é útil para a reprodução do machismo. Pedir provas de crimes sexuais é outro ato de agressão; não façam isso porque, ao fazerem estão diminuindo o peso da palavra da suposta vítima. A palavra da vítima tem peso de prova. Nas duas vezes em que fui abusada só havia o abusador e eu no ambiente. A palavra da vítima é desse modo recebida pela lei.

Dizer tudo isso é olhar para os fatos usando o histórico de crimes como esses e não massacrar o acusado.

Homens que correm para dizer que estamos condenando o suspeito "apenas" porque uma mulher o denunciou fazem esse apelo em causa própria - conscientes ou não. Temem que amanhã alguém traga algum possível episódio do passado - ou quem sabe do presente - que poderá acabar com suas vidas. É a barbárie, dizem.

Vejam, a barbárie é ser mulher dentro de uma sociedade patriarcal. Essa é a barbárie que está hoje mesmo em operação. Sobre essa barbárie não falam. Estão muito preocupados com uma barbárie hipotética que pode acontecer no futuro se a palavra da mulher for levada em consideração com mais peso do que a palavra de um homem para crimes de violência de gênero. Não toleram a ideia de um mundo no qual a palavra deles corra o risco de ser desprezada, uma realidade na qual possam ser considerados menores. Não toleram a ideia de viver como vivem as mulheres dentro do patriarcado.

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Quem nada fez contra o corpo e a integridade de uma mulher, nada tem a temer. Não há casos de mulheres que tenham um dia acordado e pensado: hoje vou acabar com a vida daquele ali e vou fazer uma denúncia de crime sexual. Isso não existe porque as vidas que terminam com as denúncias são as nossas. Denunciamos para que o predador pare de atuar. Fazemos em nome de outras mulheres que podem ser poupadas da atuação de um determinado homem. Fazemos em nome de uma ideia de comunidade. É preciso olhar a circunstância antes de sair anunciando preocupações que tem nome próprio a carregam medos muito pessoais.

Anielle Franco e as demais supostas vítimas precisam de proteção. Elas não devem nada a ninguém. Não têm que ser cobradas a falar ou a dar explicações. Elas precisam se curar da dor, do trauma, do sofrimento. Todas nós precisamos. Vocês sabem o que é passar pela vida sentindo medo o tempo inteiro? Entrar no ônibus e fugir da proximidade do corpo de um homem? Se apaixonar pelo gênero que você teme? Saber que nossos abusadores são ao mesmo tempo homens que admiramos e que fazem uso dessa admiração para invadirem nossos corpos sem consentimento? Saber que nossas casas são os lugares menos seguros do mundo para uma mulher?

O caso envolvendo Silvio Almeida é complexo e mobiliza muitos sentimentos. Tristeza, desespero, agonia, angústia, raiva, aflição, ansiedade, solidão. Silvio é um dos nossos. É genial. É luz na escuridão capitalista. É norte. E, é possível, também um abusador. Estamos vivendo um pesadelo. Mas vejam: essa é nossas vidas. Silvio Almeida não seria o primeiro. Mas seria muito importante que fosse o último. E que usasse todo o seu brilhantismo e inteligência para rever atitudes, se for esse o caso, e então voltar.

Mas há muitas outras questões envolvendo esse vazamento que precisam ser explicadas. Listo algumas.

Por que agora? Lula sabia há quanto tempo? Quem mais no governo sabia e há quando tempo? Se sabiam, o que fizeram? Por que outras denuncias de assédio dentro do governo não recebem esse mesmo tratamento? Por que Lula segue confraternizando com acusados de estupro e foi implacável com Silvio Almeida?

O caso é inédito e pode nos educar de maneiras também inéditas. O letramento feminista do governo Lula é quase inexistente. Quem sabe agora esse governo comece a compreender que o debate sobre gênero é central na política atual.

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Por fim, mas não menos importante: esse não é um debate sobre pautas identitárias. A única pauta identitária que precisa ser tratada como tal no país em que vivemos é a do homem branco heterossexual. Essa é a identidade cujos valores precisam ser questionados, debatidos e perdidos. Estou vendo muita gente argumentar que o episódio envolvendo Silvio Almeida e Anielle Franco é, na essência, uma questão identitária. Eu argumentaria que as pautas que levam o nome de identitárias são as pautas universais porque elas dizem respeito a emancipação de todas e de todos nós. Enquanto o homem branco heterossexual não se enxergar como a identidade a ser criticada, já que os valores que ela carrega estão, nesse momento, destruindo nossas chances de vida sobre o planeta, não seremos capazes de sair desse lugar tão triste em que vivemos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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