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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Daniel Alves convida a refletir sobre a cultura do estupro

O lateral Daniel Alves no banco de reservas da seleção brasileira na Copa do Mundo do Qatar - Jean Catuffe/Getty
O lateral Daniel Alves no banco de reservas da seleção brasileira na Copa do Mundo do Qatar Imagem: Jean Catuffe/Getty

Colunista do UOL

24/01/2023 11h41

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A cultura do estupro é uma série de crenças e comportamentos que encoraja a agressão masculina e apoia a violência contra mulheres.

Essa cultura não dá importância a dados como: uma a cada três mulheres é vítima de violência sexual pelo menos uma vez na vida.

Também não liga para o fato de que muitas dessas mulheres são vítimas de violência sexual várias vezes na vida.

A cultura do estupro ignora a ameaça de agressão sexual que persegue uma mulher todos os dias de sua vida e molda a forma como nos movimentamos e nos comportamos durante todos os minutos de nossos dias.

A cultura do estupro é aquela que diz como devemos nos vestir, onde podemos andar, a que horas podemos sair, a que horas temos que voltar.

Diz também como beber, quanto beber, onde beber, com quem beber.

Avisa sobre como seria melhor usar tênis para poder correr caso seja necessário, indica com quem podemos falar e quem devemos evitar.

Lembra a gente sobre que tipo de transporte público usar e, em caso de lotação, como devemos fechar nossos braços sobre nossos peitos.

A cultura do estupro nos ensina a sentar com a perninha sempre fechada desde nossa infância.

Avisa que não podemos andar de biquíni ou com pouca roupa perto de familiares do sexo masculino porque não seria de bom tom provocar ideias e desejos.

Indica como abrir a porta para o rapaz da entrega de comida.

A cultura do estupro ensina a não nos deixarmos estuprar - e não a não nos estuprarem.

O foco é o comportamento da mulher - e não o do homem.

Faz parte da cultura do estupro a camaradagem do silêncio diante de acusações graves e fartas de provas como essa que envolve Daniel Alves.

Daniel Alves é o cara.

Foi convocado mesmo sem preencher quesitos técnicos porque Tite - que está em silencio, aliás - avaliou que ele seria ótimo para o grupo.

Em coletivas, Dani Alves era mais paparicado do que questionado.

Toca pandeiro bem demais.

É multicampeão.

Foi fervoroso eleitor do cara cujo mantra é Deus, Pátria e Família.

Deus acima de tudo.

Daniel é bom demais.

Melhor aguardar mais provas.

Vai que a mulher está mentindo.

Vai que ela queria sim dar pra ele. É o Dani Alves, porra. Quem não quer dar pra ele?

Eu mesmo já fui obrigado a forçar coisas com mulheres que fingiam que não queriam. Mas elas queriam sim. Claro que queriam.

Mulher na balada tá a fim sim.

Mulher bebendo na balada é porque quer dar.

O que essa mulher que acusa o grande Dani tá querendo de fato? Precisa ver isso aí, né?

Vai que essa mulher quer uma grana.

Ah, pera, parece que ela abriu mão da grana (não poder pedir uma indenização por ser acusada de aproveitadora é parte da cultura do estupro).

A cultura do estupro envolve pacto, comportamento, linguagem, léxico e silêncios.

Pesquisa recente da Harvard Kennedy School diz que a cultura do estupro molda a forma como enxergamos os casos denunciados.

Molda como os casos são noticiados pela imprensa. "Mulher diz que Daniel Alves a teria estuprado" é diferente de "Daniel Alves é acusado de estupro". "João bateu em Maria" é diferente de "Maria foi agredida por João".

A cultura do estupro, diz a pesquisa, molda a tendência de culparmos a vítima. Molda a descrença em sua palavra.

Molda a imediata defesa que se faz do acusado ainda que as falsas acusações sejam da ordem de 5% ou menos.

O caso Daniel Alves é um insano escândalo de proporções históricas.

Há uma tonelada de indícios graves que justificam o posicionamento imediato, feitas as devidas ressalvas sobre a (cada dia menor) chance de ele ser inocente.

Vivemos em uma sociedade que nos diz: "não se deixe estuprar!" quando deveríamos viver numa sociedade que dissesse "não estupre!"