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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Messi e o espírito de Natal: sinto, logo existo

Lionel Messi beija a taça da Copa do Mundo depois da final de 2022 contra a França - ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP
Lionel Messi beija a taça da Copa do Mundo depois da final de 2022 contra a França Imagem: ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP

Colunista do UOL

25/12/2022 13h18

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Quando eu era pequena entendia o Natal como um dia para receber presentes. Desde o meu núcleo privilegiado, com ceia farta, árvore enfeitada e múltiplos pacotes sob ela.

Teve uma época que minha mãe fazia meias grandes, pendurava-as aos pés de nossas camas e, na manhã seguinte, acordávamos para perceber que Papai Noel tinha passado e, além dos presentes, enchido as meias com balas.

No Natal, podíamos comer as balas antes mesmo do café da manhã. Era uma doce desordem.

Quando virei adolescente, o Natal perdeu a graça por completo.

Não queria estar em família, obrigada a esconder minha homossexualidade recém colocada em prática. Noites de Natal viraram noites de tédio profundo em que eu era obrigada a passar em família.

Meu irmão e minhas irmãs são uma gente parideira e os dias de tédio natalino terminaram com a chegada dos sobrinhos. Crianças correndo e tocando o terror pela casa colocaram fim à monotonia.

Mas foi apenas já mulher madura que eu fiz as pazes com o Natal.

Para isso precisei dissociá-lo de figuras e ritos. Entendi, aos poucos, que era mais sobre estar com quem se ama do que sobre presentes e obrigações.

Mais do que isso, compreendi que era um dia em que o convite ao amor e ao respeito superava os constantes convites ao ódio, ao confronto, à competição. Pelo menos em teoria era assim, e isso já é bastante coisa.

Somos encorajados a acreditar que o ser humano maduro é um adulto que coloca o princípio da razão acima de qualquer outro. Penso, logo existo é o mantra da sociedade patriarcal hetero-normativa.

Sentir é para os fracos. Demonstrar o que sente é coisa de frouxo.

Para homens inundados dessas certezas o único campo possível dentro do qual é permitido demonstrar sentimentos é o futebol.

Vale agarrar outros homens, chorar, ajoelhar, beijar barbas estranhas. Terminado o transe, voltamos a nossa programação normal.

Pesquisa recente indicou que em dias de grandes derrotas dos times de massa aumenta a violência contra as mulheres nos lares. Trata-se de um jogo que tem dois extremos.

Quando o futebol não serve como arena para extravasar o que se sente, a panela explode com sua pressão.

É aqui que quero falar de Messi e do time argentino.

Messi é o artista que nos convida a sentir.

Vê-lo em campo coduzindo a bola, enfiando passes, encontrando e criando espaços, dando um jeito de vencer o goleiro faz com que simplesmente sintamos.

Notar que um gênio como ele além de tudo volta para marcar como se fosse apenas mais um de nós também comove e arrepia.

Houve muitos momentos na Copa do Qatar em que pudemos sentir e nos perceber vivos. O gol de Richarlison e a torcida do Marrocos em transe são dois.

Mas foi no time da Argentina que nos conectamos mais intensamento com o fato de estarmos vivos.

Passada uma pandemia, passado o horror de um governo desumano e genocida, depois de tantas perdas eis que foi nas cores dos rivais que pudemos lembrar que seguimos aqui e respirando.

O futebol é maior do que camisas, acho que todos sabem disso.

O que nem todos sabem é que sentir é maior do que pensar.

Se deixar atravessar por sentimentos sem lutar contra a ocupação de nossos corpos pelo que chamam de amor.

Amor tem pouco a ver como relacionamentos e muito a ver com um estado de espírito, com uma certa ética de vida, com a entrega que, de tão imensa, não acha espaço para esperar resultados, retribuições, pagamentos.

Messi em campo é puro amor e é isso o que nos toca tão profundamente.

Ao executar sua arte ele explode convenções sobre como devemos ser razoáveis e comportados. Cutuca sentimentos adormecidos, explode sem pedir licença as fronteiras da razão.

Se um dia passou por essas terras um ser humano conhecido como Jesus, se ele fez pelo menos uma parte do que dizem os livros sagrados, uma pequenina parte, então estamos falando sobre o Natal ser momento de celebrar valores como a humildade, a entrega irrestrita ao momento e um estado de atenção absoluto sobre aquilo e aqueles que amamos.

Claro que no nosso caso, pessoas miúdas e sem muito espírito crístico, isso se restringe a um núcleo estreito de pessoas.

Alargar o campo dos afetos e tratar todos como filhos e filhas, como faz o padre Julio Lancelotti, é para os mais evoluídos.

Sentir sem medir. Sentir para existir.

Pensar qualquer bom diabo pode fazer com maestria; é sentir o amor que nos aproxima do que há de mais sagrado.

Viva o futebol, viva Messi, viva o espírito de Natal.

Feliz Natal, meus caros leitores e leitoras.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL