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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na primeira Copa pós-pandemia o futebol avisa: estamos muito vivos

Lautaro Martínez e Messi após t´tiulo da Argentina na Copa do Mundo - ANNE-CHRISTINE POUJOULAT / AFP
Lautaro Martínez e Messi após t´tiulo da Argentina na Copa do Mundo Imagem: ANNE-CHRISTINE POUJOULAT / AFP

Colunista do UOL

18/12/2022 19h45

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Sentimos. Sentimos o baque com força. Todos, todas e todes.

Perdemos o ar, perdemos o fôlego, por vezes perdemos a esperança.

Mas, não demorava, e já ganhávamos batimentos cardíacos, pulso, sonhos, vida.

Não era exatamente o nosso time, mas lá estávamos nós em frente ao monitor, roendo as unhas, socando almofadas no sofá, berrando a ponto de acordar a criança que dormia. Melhor que acorde, disse o pai. O que estamos vendo é histórico, deixa que ela veja.

A criança chega na sala com cara de sono, mas não parece assustada. Olha em volta e vê uma dúzia de adultos de comportando como ela.

Alguns choravam, outros batiam um boneco de pelúcia com força no chão, dois estavam de cócoras com a testa no tapete.

Vai dar, disse uma voz.

Não sei, não sei, disse alguém mais comedido. Estava ganho, agora não sei mais.

Não vou aguentar, meu coração está disparado. Todos os jogos de Copa são assim?, perguntou a pessoa que raramente vê Copa, muito menos futebol, e que estava quase entrando tela adentro para fazer a bola entrar e Messi ser campeão.

Enlouquecidos, desesperados e intensamente vivos.

Isso que estamos vendo não existe, disse uma voz em súplica.

A noção da grandiosidade do momento era bastante nítida. No apartamento de cima, berros por Messi.

Não havia argentinos presentes. Nem descendentes. Só brasileiros.

Minha mãe, de 85 anos, queria saber se alguém tinha notícias da Abuela La La La, se ela estava bem diante de tanta emoção. Ninguém sabia dizer da Abuela, mas alguém avisou que checaria assim que o jogo acabasse.

Não vai acabar jamais, entramos numa fenda temporal, sussurrou outra voz.

A Argentina e Messi, sem nenhum esforço de marketing, envolveram o mundo durante a campanha do Qatar.

O que eles têm que a gente não tem?

Eu diria que uma boa dose de sinceridade.

Mesmo no desespero, e mais ainda na alegria, não parece que estejam exagerando, simulando, enfeitando.

As reações, a forma de torcer, a entrega, o sangue, os berros, a dor, o gozo e a desolação soam honestos como são as coisas que vêm de um lugar de verdade.

Em campo, desfilam o que são culturalmente: intensos, dramáticos, veementes, apaixonados, desesperados.

Eles pegam esses valores, que formam boa parte da identidade nacional, e transformam em tática, em estratégia, em equipe, em time, em música.

Nós não.

Desde 1986 ignoramos por completo o que somos culturalmente - alegres, exuberantes, dançantes, ritmados por tambores, terreirizados, carnavalescos - para colocar em campo o conservadorismo de um Brasil institucional que dá as mãos ao Emir para, de terno, se sentar na tribuna de honra e vibrar como uma estátua.

O futebol brasileiro hoje representa o Brasil oligárquico, careta e covarde e, em campo, joga como - e para - ele.

Assim, não vamos a lugar algum, e também não vamos fazer circular afetos nobres como fazem nossos vizinhos.

Imagine se aqui abraçaríamos uma Abuela para virar talismã da campanha da Copa. Vocês acham que faríamos isso?

Aos poucos, vamos morrer. Transformar tudo em SAF, entregar o poder a meia dúzia de Ronaldos ou de Corporações gringas com sede em Miami, e, despacito, acabar.

Vai ser uma pena porque o futebol é o transbordamento da vida.

É, como qualquer outra forma de arte, o que nos eleva a um lugar de algum significado.

É, como uma noite de amor, a certeza de que, apesar de tanta injustiça, tem momentos em que tudo faz sentido.

Um brinde a Messi, Scaloni e ao time da Argentina que foi ao Qatar nos lembrar o que é o futebol - e o que é a vida.

Não precisa ser argentino para se emocionar com o que eles fizeram porque o resgate vale para todos.

Vale para quem torce pela Argentina, para quem torceu só hoje, para quem não torce, para quem jamais vai torcer e até para quem detesta futebol.

Viver não é fácil e, nesses tempos tão brutos e tão capitalistas, tem sido especialmente desafiador.

É por isso que a arte é tão fundamental; ao abrir uma fresta na dureza da vida ela nos deixa espiar o que importa e, ao espiar, a gente respira e resiste.

Estamos vivos. E hoje estivemos intensamente vivos.

Obrigada, Argentina.