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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a dança depois de um gol incomoda?

Richarlison faz "Dança do Pombo" em comemoração de gol contra a Sérvia - Chris Brunskill/Fantasista/Getty Images
Richarlison faz 'Dança do Pombo' em comemoração de gol contra a Sérvia Imagem: Chris Brunskill/Fantasista/Getty Images

Colunista do UOL

08/12/2022 13h13

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"Não conheço nenhuma reflexão teórica que incomode mais o colonialismo do que um corpo que dribla, samba, malandreia, dispõe-se ao pombagiramento", ensina o professor Luiz Antonio Simas.

Ele segue: "O colonialismo não sabe lidar com o baile funk, com a passista, com a pernada, com os corpos garrinchados. Por isso pretende destruí-los".

O corpo sempre foi considerado pelas sociedades modernas como o menor lugar da inteligência. A cabeça é o espaço nobre; o corpo, o espaço menor.

Para o mundo considerado civilizado, o corpo do homem serve para o trabalho e o da mulher serve para o sexo e para parir - e para nada mais do que isso.

A mente, essa sim, deve ser valorizada.

Ganha milhões o CEO e ganham uma miséria o trabalhador e a trabalhadora no chão de fábrica.

Ao nos ensinarem a falsa diferença entre corpo e mente, aprendemos a nos aquietar nos nossos lugares e concordamos em ter nossos corpos controlados e subvalorizados.

Corpos civilizados torcem por seus times sentados e aplaudindo o gol. Corpos selvagens pulam, berram, se descabelam e entram em transe.

Corpos civilizados celebram um gol com abraços; corpos selvagens dançam.

A crítica às danças dos jogadores brasileiros nasce desse lugar colonizado do pensamento.

Vem da mesma estrutura que quer civilizar os estádios, que arranca as gerais, que manda que a camisa não seja tirada depois do gol, que encarece o ingresso, que criminaliza torcidas organizadas, que coloca DJs nos estádios para ordenar o evento.

A domesticação dos corpos impede a dança e abre ambiente para que um grupo de farialimers patrocinado por uma marca de cerveja seja considerado decente para torcer in loco pelo Brasil na Copa do Qatar.

Tudo faz parte de um mesmo pacote de atrocidades que envolve o controle de nossos corpos.

É por isso que as danças de Vini Jr., Richarlison e companhia ofendem tanto.

É por isso que a imagem dos pentacampeões assistindo a uma partida de Copa do Mundo como quem assiste a uma ópera é aceitável.

Lutar contra esse deplorável estado de coisas é celebrar o que fazem marroquinos e argentinos nas arquibancadas.

É aplaudir a dança depois do gol. É esbravejar contra o cartão amarelo dado pela comemoração desmedida.

A inteligência do corpo é imensa e cheia de beleza.

É ela o que, ao lado de outras formas de arte, nos torna humanos e nos eleva a um lugar de algum significado.

Que os brasileiros sigam dançando e provando que, a cada drible, um novo espaço do sagrado está sendo inaugurado.