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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cerimônia de abertura é um espetáculo de exclusão, e a TV acha tudo lindo

Colunista do UOL

20/11/2022 13h47

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Logo nos primeiros minutos da cerimônia de abertura da Copa, o comentarista Roger Flores declarou, emocionado, que foi muito feliz no Qatar quando jogou por lá. Que foi muito bem tratado. Que foi muito ajudado sempre que precisou.

Roger morou a trabalho no Qatar em 2008 e agora, ao voltar, está abismado com a modernidade do país e com as construções.

Nenhuma menção aos milhares operários privados de direitos trabalhistas que morreram no ofício para que as construções fossem erguidas.

Nenhuma menção à falta de direitos humanos.

Nenhuma menção ao fato de que se não fosse um homem branco rico e heterossexual esse tratamento tão gentil não teria sido a ele conferido.

Quem assistiu à abertura da Copa pela Globo teve a impressão que a Copa estará sendo jogada num paraíso terrestre. E o Qatar é tudo menos isso para quem não é nem homem, nem branco, nem muito rico ou muito hétero.

Nesse contexto, omitir é desinformar e alienar.

Luis Roberto até falou que esperamos um mundo mais solidário e inclusivo, colocando as exclusões que são protegidas por leis no Qatar, entre vírgulas e com bastante passadas de pano - e foi isso.

Depois, como quer a Globo, o futebol seguiu sendo 100% entretenimento e 0% jornalismo.

E a reclamação aqui é mais à emissora do que aos profissionais que, mesmo se quisessem ser críticos, não encontrariam respaldo, incentivo, aplausos - muito pelo contrário. A Globo detesta misturar política e futebol, como sabemos.

Deve haver um modo de exaltar a potencialidade e a beleza de um evento como a Copa do Mundo e, ao mesmo tempo, incluir as devidas críticas dado que o desrespeito aos mais básicos direitos humanos é, entre todos os malfeitos, o pior deles.

Não foi feito - pelo menos não em matéria apresentada no "Fantástico" domingo passado que tratava do lançamento da cobertura da Copa na Globo, e não também na transmissão da cerimônia de abertura.

Quem estava conhecendo o Qatar pelo que diziam Roger e Luis Roberto na TV certamente ficou com a impressão de que se trata de um lugar bastante decente e liderado por um homem muito querido.

O Emir é adorado aqui no Qatar, disse Roger quase emocionado vendo o Emir entrar e ser aplaudido.

Sabe-se lá o que acontece com quem não aplaudir efusivamente o ditador, mas isso não foi dito nem por Roger nem por ninguém obviamente. A palavra ditador passou longe da transmissão.

Nas imagens pela TV, homens; muitos e muitos homens.

A certa altura, Luis Roberto tentou emocionar falando que estávamos vendo uma cerimônia de congraçamento.

Congraçamento do quê? De muitos homens e nada mais.

A diversidade era ver homens de túnica, de terno ou de camiseta.

Poderíamos ter nos comentários da TV uma mulher, até para dar uma equilibrada mínima, mas os escalados foram Caio Ribeiro e Roger Flores. Se Roger não criticou, Caio muito menos.

A inconfundível voz de Morgan Freeman, que já interpretou Deus no cinema, foi ouvida na cerimônia interpretando um texto que falava em igualdade e justiça. Um enorme papo furado se a gente olhasse em volta e notasse o que é o Qatar e quem estava presente à festa.

"Estamos no magnífico estádio Al Bayt", disse Luis Roberto sem avisar que o estádio é um projeto do filho do arquiteto de Hitler.

A empresa AS+P é alemã e foi fundada por Albert Speer, filho de outro Albert Speer, ministro das armas e arquiteto do período Nazista alemão.

Luis Roberto ainda falou durante a transmissão que há povos conquistadores e há povos nômades e que estavam todos ali representados.

Por conquistadores a gente deve entender colonizadores e imediatamente anexar à informação todos os pavores dos processos de colonização.

Isso, claro, não foi dito.

O narrador da Globo seguiu falando da beleza da inclusão contida nos discursos.

Nas imagens, não havia inclusão. Havia, isso sim, uma batalha feroz entre o que era dito e o que era visto.

Não sou ingênua a ponto de achar que a emissora que tem os direitos de transmissão iria gongar a Copa já na abertura.

Ou que irá tecer pesadas críticas ao longo do mês.

Mas temos que constatar que até a Al Jazeera, rede de comunicação de língua árabe com sede no Qatar, está fazendo uma cobertura mais crítica.

Hoje, em seu portal, um dos destaque era um texto bastante crítico que dizia: O Capitalismo não vai matar o futebol.

É uma pena que a transmissão da Globo seja tão simpática aos horrores do Qatar.

Poderíamos buscar uma forma de encaixar educadas e necessárias críticas em nome da construção de um mundo melhor.

Seria bacana ver isso acontecer um dia.

  • O Posse de Bola Copa traz comentários de Casagrande, Juca Kfouri, Mauro Cezar, Arnaldo Ribeiro e José Trajano sobre a Copa do Qatar, com apresentação de Eduardo Tironi. Assista ao programa de UOL Esporte: