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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como a TV amalucou o discurso de Casão

Futebol sem Fronteiras, de Julio Gomes, terá Casagrande e Jamil Chade de convidados - Arte/UOL
Futebol sem Fronteiras, de Julio Gomes, terá Casagrande e Jamil Chade de convidados Imagem: Arte/UOL

Colunista do UOL

05/08/2022 18h18

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Comecei meu dia escutando Casagrande em duas entrevistas. A primeira que escutei foi a que ele deu ao podcast dos jornalistas Julio Gomes e Jamil Chade: Futebol Sem Fronteiras, do UOL.

A segunda foi dada ao podcast Café da Manhã, do Grupo Folha.

A impressão que tenho é de testemunhar a lucidez e a sobriedade de Casagrande ganharem cada vez mais musculatura. Fiquei pensando o que teria mudado, ou se alguma coisa poderia ter mudado, em tão pouco tempo.

Na Globo, a voz de Casão era uma voz solitária e que já não encontrava interlocução - como ele mesmo vem dizendo. Uma voz que morria no vazio, sob olhares silenciosos.

Agora, Casão tem falado com muita personalidade e eloquência dos problemas que nos afetam atualmente, relacionando de forma bastante didática todos eles ao futebol: precariedade social, violência sexual, homofobia, violência.

Mas se ele sempre falou sobre essas coisas por que agora sua voz parece mais lúcida, mais didática, mais potente?

Ele mesmo dá a dica quando diz que, na Globo, queriam comentários só do jogo, dos 90 minutos, do que acontecia em campo exclusivamente e, para ele, futebol é muito mais amplo do que aquilo que acontece durante uma parida.

"Futebol no Brasil salva a vida de muitas famílias, é uma saída da vida difícil, sofrida", ele diz antes de completar que não vê, então, por que transformar futebol em piada. "Pode ser leve, mas precisa ser sério".

Essa seriedade com que ele gosta de tratar o esporte foi, durante os últimos anos, confundida com maluquice, chatice, mesmisse.

Existem muitas maneiras de você transformar o discurso de outra pessoa em um discurso amalucado sem precisar dizer diretamente: você é maluco.

Basta, por exemplo, não dar retorno a ela.

Basta não responder.

Basta virar os olhos.

Basta dizer: "vamos seguir aqui com o programa" deixando o colega no vácuo.

Quando isso acontece, o espectador é levado a acreditar que aquela pessoa "falando sozinha" é maluca.

Qual é, no popular, a definição de maluco? Exatamente essa: aquele que fala sozinho.

A impressão que se passa é a do "melhor não contrariar". A pessoa fica com um aspecto "café-com-leite", um "não vamos perder nosso tempo respondendo".

É uma tática de infantilização, uma velha ferramenta do machismo muito usada com mulheres que estão em posição de algum poder ou destaque: deixar falar sozinha.

Outra coisa que colabora para que o discurso que não é o de todos, que não é o universal, que não é aquele aceito por normas e convenções corporativas seja considerado maluco é a falta de tempo para elaborá-lo. E não há muito tempo na televisão para que uma ideia seja aprofundada.

É dessa forma que o discurso tradicional é facimente reproduzido, e as opiniões não convencionais soam quase sempre desajustadas.

É fácil dizer na TV coisas como "árabes são terroristas". Embora a frase exprima uma mentira, ela é universalmente aceita porque se convencionou midiaticamente que todo terrorismo é praticado por árabes.

O difícil é dizer: "O estado americano pratica terrorismo" porque, ainda que frase exprima uma verdade, será preciso muito tempo para justificar a colocação, que não é a convencional.

A pessoa que tentar, terá pouco tempo, talvez tropece nas palavras, talvez perca o fio do pensamento e, qualquer titubeio, qualquer gaguejamento reforçará não apenas o discurso convencional como também a ideia de que aquela pessoa é meio maluca, meio desajustada, meio desencaixada.

Talvez por isso a voz de Casão, agora encontrando interlocução, agora não mais solitária, agora não mais ecoando no vazio, esteja sendo escutada como ela sempre foi: lúcida, sóbria, razoável, potente, destemida, firme, perseverante; solidária e não mais solitária.

Recomendo que escutem os dois podcasts e espalhem por aí a coragem desse homem.