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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que Cuca pode fazer para se livrar da história do estupro?

Cuca projeta 15 vitórias em 19 jogos para colocar o Atlético-MG na briga pelo título do Brasileirão - Pedro Souza/Atlético-MG
Cuca projeta 15 vitórias em 19 jogos para colocar o Atlético-MG na briga pelo título do Brasileirão Imagem: Pedro Souza/Atlético-MG

Colunista do UOL

29/07/2022 04h00

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"Já passou", "esse crime é antigo, tá prescrito", "parem de ser chatas", "deixa o cara trabalhar em paz", "o que mais vocês querem dele? Já foi condenado. Quanto punitivismo!"

Esses são comentários de homens em relação à insistência — para não escrever chatice — de algumas de nós que seguimos falando da condenação de Cuca por envolvimento no estupro de uma menina de 13 anos na década de 80.

Por que não nos calamos?

Não nos calamos por alguns motivos.

Nesse exato momento, vendo Cuca ser elevado à categoria de ídolo salvador da pátria atleticana, não nos calamos porque nos desesperamos diante de um mundo no qual ídolos podem ser homens já condenados por envolvimento em estupro. De menor.

"Ah, mas isso foi há 30 anos! Esquece essa história", dizem.

Quem pode se dar ao luxo de esquecer essa história?

Mulheres estupradas jamais esquecem o que viveram.

Você esqueceria se fosse com a sua filha?

E quem se beneficia com o esquecimento dessa história?

Não nós, mulheres estupradas a cada dez minutos ainda hoje no Brasil.

Eu já fui estuprada? Sim.

Todas as mulheres que conheço já foram vítimas de violência sexual? Sim.

Alguma delas deu queixa? Não.

O dado a respeito de violência sexual no Brasil é violentamente subestimado.

Calcula-se que o número de estupros seja dez vezes maior do que os que são relatados.

São números de uma Guerra. O inimigo é o corpo feminino, território a ser ocupado, violado, destruído.

Cuca, então, não é apenas Cuca.

Cuca representa todo homem que já estuprou — condenado ou não.

Diante disso, o que Cuca deveria fazer para se livrar da história do estupro?

Deveria revisitá-la publicamente.

Não basta se manifestar com cara de vítima, usando santinho na corrente em volta do pescoço e metido numa camiseta com motivos de Nossa Senhora dizendo com o olhar baixo que é inocente mesmo tendo sido investigado e condenado.

É preciso falar claramente sobre esse passado sombrio.

É preciso falar — como vocês gostam de dizer — que nem homem.

Olhando de frente. Sem rodeios. Sem firulas.

Sem vitimização porque a única vítima da história em questão é uma menina de 13 anos.

Muitos de vocês que estão lendo esse texto já cometeram um ato de estupro.

Muitos de vocês acreditaram que não estavam estuprando.

Muitos de vocês se arrependeram e hoje entendem o que fizeram.

Não se trata de espinafrar para sempre, se trata de manter o foco na vítima e de se colocar na posição de predador, que é o que um estuprador é: errei, cometi um crime, me arrependo, hoje sei a gravidade do que fiz e sei que a vida daquela criança vai ficar para sempre impactada pela violência que cometi. Quero ser aliado. Tenho filhas. Não quero que elas vivam nesse mundo onde homens podem fazer com o corpo de uma mulher o que bem entenderem.

Uma coisa mais ou menos assim seria um ótimo começo.

Cuca poderia construir uma estrada em direção a ser de fato um grande homem se, nesse caminho, lutasse pela causa, fosse voz ativa na batalha contra a violência de gênero, chamasse todos os homens que o admiram à luz da razão, da decência, da dignidade.

Cuca poderia ser esse cara. Poderia virar esse jogo.

Ficaríamos emocionadas e o acolheríamos na luta.

Mas o pacto de Cuca é com os demais acusados e condenados, com os parceiros no crime, e não com a gente.

A construção da figura do jogador de futebol de sucesso — assim como a do homem de sucesso — vem com a noção de que ele pode ter os bens que quiser: casas, carros, mulheres.

Somos colocadas na categoria de propriedade.

Tudo vale porque não tem no mundo quem rejeite um homem de sucesso. Ela finge que não quer para fazer charme. Vou dar uma forçada porque no fundo ela quer.

"Ah, mas no futebol as mulheres dão mole. Ficam ali aos montes querendo os caras", dizem.

Como se as mulheres fossem formadas numa sociedade em Urano, diz minha namorada genial sempre que um argumento desses passa por ela.

Pois é: essa é a sociedade terráquea em que vivemos.

Estamos todos nela inseridos e, portanto, infectados dessa misoginia e desse machismo, todos moldados nas mesmas formas do patriarcado heteronormativo.

Testemunhar a construção da idolatria a um homem condenado por envolvimento em estupro (cometido contra o corpo de uma menina de 13 anos) que se recusa a tratar honestamente do assunto é uma ofensa a todas nós.

E deveria ser para vocês também.

Querem falar das qualidades dele como treinador? Ok, façam isso sem fogos de artifício mas tendo em mente o mérito de sua condenação: envolvimento em estupro de uma menina de 13 anos e recusa em revisitar o episódio.

Resistam à tentação de idolatrá-lo ou erguê-lo à categoria de heroi ainda que ele siga conquistando títulos.

Mas vocês não agem assim.

Estamos vendo o que vocês dizem a respeito de Cuca.

As confraternizações em ambientes privados. A masturbação coletiva.

O pacto entre vocês é doentio na medida em que, ali na frente, é justamente ele que nos mata.

E alguns de vocês se declaram nossos aliados, acreditam serem de verdade nossos parças, mas não são não.

Pelo menos não ainda.

Precisa ser muito homem para chamar a atenção do coleguinha, para romper relações se for o caso, para escutar o comentário da parceira de trabalho sobre Cuca e dar continuidade ao assunto em vez de ignorar e seguir com o programa deixando a colega no vácuo.

Existem muitas formas de chamar uma mulher de louca sem precisar dizer "você é louca".

Acreditem, nós adoraríamos parar de fazer o papel de chatas. Nós não queremos crucificar esse ou aquele. Queremos apenas parar de ser abusadas, estupradas, assassinadas.

Adoraríamos apenas reverenciar Cuca por suas qualidades como treinador. Realmente adoraríamos não estar nesse lugar. É, aliás, tudo o que queremos. Mas não estamos podendo nos dar a esse luxo e buscamos alianças.

Precisamos que vocês entrem de fato nessa luta com a gente porque não aguentamos mais tanta violência, estamos exaustas e, ainda assim, não voltaremos atrás.

Quem vem?