Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Casão: A democracia corintiana apenas me mostrou quem eu era; não vou mudar

Sócrates e Casagrande comemoram título paulista do Corinthians sobre o São Paulo no Morumbi - Jorge Araújo/Folhapress
Sócrates e Casagrande comemoram título paulista do Corinthians sobre o São Paulo no Morumbi Imagem: Jorge Araújo/Folhapress

Colunista do UOL

07/07/2022 13h29

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Um dia depois de anunciar sua saída da Globo, Walter Casagrande deu uma entrevista ao UOL. Fui convidada para fazer parte do time de entrevistadores acompanhada de dois craques: Mauricio Stycer ao meu lado e mediação de Kennedy Alencar.

Fazia tempo que não via Casão tão leve, feliz e apaixonado como nessa entrevista. Me pareceu evidente que quando disse que estava aliviado de deixar a Globo ele estava sendo sincero - como, aliás, ele sempre é.

O comum quando alguém se desliga de uma emissora com o poder e a qualidade da Globo é não deixar evidente nenhum tipo de alegria, raiva ou frustração. Mas Casão não é um cara de platitudes. Ele só sabe dizer a verdade, não tem outro modo de operação na sua configuração padrão, e foi assim por mais de uma hora.

A conversa vale ser assistida na íntegra porque Casão falou sobre diversos assuntos, de futebol à Bolsonaro passando por dependência química, Richarlyson e machismo.

Vou destacar apenas alguns aqui.

Sobre o papel social do futebol e o fato de a Globo ter tirado o jogo do jornalismo e levado para o entretenimento, Casão disse que foi a partir dessa mudança que passou a não ter mais eco lá dentro. Disse que suas opiniões, antes comentadas, agora não recebiam nenhum tipo de retorno dos colegas.

Essa mudança de vestimenta do jornalismo para o entretenimento, uma mudança técnica e interna, fez o futebol da Globo optar pela graça e pela piada em detrimento de posicionamentos políticos.

"Meu papel não é ser engraçado. É dar opinião", Casão disse sobre o tema. Em seguida, explicou que precisa se sentir independente para dar opinião. "Dou muito valor à independência das minhas ideias", disse.

O comentarista contou que, justamente por isso, não se envolve muito com as pessoas do meio. "Futebol é muito sério pra ser só piada".

Para ele, futebol mexe com política, com o social; pode ser bem humorado, mas não precisa ser sempre engraçado. "O futebol me deu um caminho de vida. Não consigo ficar fazendo gracinha com o futebol", disse.

Sobre falar de política, ele contou que antes de ser jogador ou comentarista, é cidadão. Que não consegue ver o país do jeito que está e calar. Nunca vai conseguir.

"Com 18 anos eu aprendi que jogador de futebol precisa colocar sua voz em pratica em nome do social". Ele explicou que jogador bem-sucedido precisa entender que as pessoas não ganham como ele e talvez parar de ostentar em rede social. Disse que as pessoas estão famintas, morrendo com bala perdida, um país arruinado e desesperado. "Isso me incomoda, não vou parar de falar. Eu sou assim. Isso aí não vai sair de mim".

Casão contou que a democracia corintiana apenas mostrou quem ele era na essência, deixou evidente que seu papel na vida era falar o que pensa em nome do social.

Ele falou também de Neymar, de como ter chamado o jogador de mimado foi explosivo, da quantidade de críticas que recebeu na época.

"Eu descobri que muita gente não sabia o que mimado queria dizer. Eu sou mimado, mas aprendi a ser mimado de uma forma mais objetiva. Sou mimado, mas me posiciono, participo. Quando falei que ele era mimado, explodiu o mundo. Se eu tivesse xingado a mãe dele teriam aceitado melhor. Mas aí fomos para a copa e ele foi patético. Não tem como aliviar. Eu sempre elogiei o Neymar quando achei que devia. O Brasil vai ser hexa e o Neymar vai arrebentar [no Qatar]? Pode ser. Mas qual a base dessa opinião? Não tem. É ufanismo. Na última Champions ele não fez gol, há dois anos é só contusão, ele não tem sido decisivo, o Brasil só joga com seleções daqui. Então qual a base dessa ideia?"

De 2019 pra cá, Casão saiu dos comentários da seleção. "Não posso dizer que seja por causa desse episódio [do Neymar]", disse antes de seguir. "Acho que é perfil. Não querem alguém que critique, pelo menos não tão diretamente. Talvez queiram alguém que critique de um modo mais brando. E eu não sei ser brando".

Sobre Bolsonaro, disse que é um dos piores brasileiros vivos e que a turma machista cresce porque tem o aval dele e por desespero porque estão vendo que a estrutura está ruindo. "Quando ficam desesperados eles mostram quem são".

Teve muito mais. Casão é um homem midiático que consegue ser apaixonado e coerente; lúcido e eloquente. Um cara que ama o futebol e sabe que o jogo precisa estar inserido em contexto social, especialmente dentro de um país em ruínas. Perder Casão é perder muita coisa.

A saída dele da Globo em ano de Copa é preocupante para todo mundo que vê o futebol dessa forma e para todo mundo que entendeu que estamos vivendo sob um governo de práticas totalitárias, autoritárias e fascistas.

Não era o momento de deixar ir uma voz com a potência da dele falando para o público do futebol.

Recentemente, Casão foi ao programa da Fátima (agora de Manoel Soares e Patricia Poeta) e falou o que pensa do governo Bolsonaro.

Em seguida, ficamos sabendo que o governo Bolsonaro voltaria a investir pesado na Globo depois de três anos sem comparecer.

E, pela ordem dos acontecimentos, Casão, a voz mais política no Esporte, teve seu contrato encerrado.

Podemos apontar causalidade nesses acontecimentos? Não, não podemos. Podemos apenas constatar a ordem em que ocorreram.

E, também, imaginar que aqueles que trabalham no esporte da Globo receberam um recado claro, tendo sido ele dado de forma voluntária ou não: aqui não é lugar para esse tipo de opinião.

É de se lamentar. Esse seria o momento de estarmos em caminho contrário, momento para deixar Casão falar cada vez mais. É a reta final da luta para nos livrar do fascismo. Calar agora é tomar partido.