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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Campo encharcado gera fúria que episódio de racismo não foi capaz de gerar

Jogadores de Fluminense e Juventude disputam bola em gramado encharcado do Alfredo Jaconi - Mailson Santana/Fluminense FC
Jogadores de Fluminense e Juventude disputam bola em gramado encharcado do Alfredo Jaconi Imagem: Mailson Santana/Fluminense FC

Colunista do UOL

06/06/2022 18h16

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Fluminense e Juventude se enfrentaram em campo encharcado totalmente impróprio para a realização de uma partida de futebol.

Condições precárias como as que vimos funcionam como um nivelador de experiências, prejudicando sempre o time mais técnico. Além de expor os atletas dos dois times a riscos que poderia ser evitados caso a partida tivesse sido cancelada.

Essa lógica leva a gente argumentar que o Fluminense foi o time mais prejudicado pela decisão de seguir com o encontro. É, sem dúvida, uma situação altamente frustrante, injusta e revoltante que a CBF não tenha optado por adiar o jogo, especialmente considerando, como argumentaram Fernando Diniz e Mario Bittencourt, treinador e presidente do Flu respectivamente, que nem Juventude nem Fluminense teriam conflito de agenda para remarcar.

É também aceitável que Bittencourt se manifeste em nota por causa do não adiamento (que acabou levando o seu time a ser derrotado) - como ele fez depois do jogo.

O que me chama a atenção é perceber, na nota divulgada pelo presidente tricolor, um tom de fúria que teria sido mais adequado quando testemunhamos Gabigol ser chamado de macaco no intervalo de um Fla-Flu realizado no começo do ano.

Na ocasião, Bittencourt primeiro disse que precisaria apurar (ok, claro, mas teria sido bacana ver ele dizer isso usando o mesmo tom de fúria que o campo encharcado brotou, tipo: "racismo é inaceitável, inegociável. Vamos às últimas consequências para apurar isso, patati patatá) e depois disse que o vídeo era inconclusivo (não era. Escuta-se sem muito esforço o atleta do Flamengo ser chamado de macaco por uma voz vinda da arquibancada).

No dia seguinte ao ocorrido com Gabigol, Bittencourt até se mostrou indignado. Mas não com o episódio e sim com Luiz Teixeira, repórter do SporTV, que sugeriu que se ele fosse branco não teria reagido tão brandamente.

Nesse momento, vimos uma versão mais irritada de Bittencourt: entrou ao vivo para confrontar Teixeira sobre a colocação.

Vejamos parte da nota que Bittencourt soltou por causa do campo encharcado. Começa assim:

"O ano é 2022. Debates grandiosos sobre criação de Liga, sobre modelos societários em clubes, mas nenhum esforço para que sejam modificados velhos hábitos do futebol brasileiro".

Esse começo - que é bom e contundente - poderia ser usado, sem mudar uma palavra, para ele se referir ao caso de racismo. Mas ele não fez isso. Nem nada parecido.

Sobre o caso de racismo, alguns podem argumentar que não temos nem como saber que os gritos de macaco vieram de um torcedor tricolor. Podem muito bem ter sido ditos por um flamenguista racista e puto com a atuação de Gabriel no clássico até ali. Verdade. Só que nada disso seria impeditivo para que Bittencourt viesse a público berrar raivosamente contra o racismo, até porque o mando de campo era do time dele.

Seria o posicionamento correto para um anfitrião, digamos. A festa é minha e, nessa festa, escutamos um convidado berrando palavras racistas. O que você faz? Para tudo. Aqui não. Que história é essa? Não aceitamos. Vou escrever ao presidente do Flamengo dizendo que sou solidário. Vou escrever ao Gabriel mostrando que estou indignado. Vou berrar contra esse absurdo, contra essa imoralidade.

Diante de uma situação como a que vimos no vídeo, com a palavra macaco ser dirigida ao atleta do Flamengo, o tom precisa ser o de fúria - tendo ele vindo de um torcedor do Flamengo, do Fluminense ou de qualquer lugar. O mesmo tom usado para criticar a CBF ter autorizado jogo em campo sem condições.

É preocupante a gente notar que, em caso de racismo, a atitude é branda e ponderada e, em caso de chuva, a atitude é furiosa e destemperada. Deveria ser o contrário. A chuva a gente não pode impedir de cair, mas o racismo a gente pode, e deve, impedir de existir.

Aqui, as duas notas emitidas pelo Fluminense para cada um desses episódios.

A sobre o racismo:

"O Fluminense informa que está apurando o episódio em que um torcedor supostamente teria dirigido palavras racistas ao atacante Gabriel Barbosa, ao final da partida deste domingo. O próprio autor da divulgação do vídeo diz que teve a impressão, sem certeza, de ter ouvido as supostas ofensas, e, neste sentido, o Fluminense informa que está buscando as imagens do estádio a fim de auxiliar na apuração da existência ou não do fato e na identificação de eventual autoria. O clube reitera que considera intolerável qualquer tipo de preconceito e se orgulha de manter como lema o 'Time de Todos', de respeito ao próximo, independentemente de raça, gênero, credo ou orientação sexual."

A sobre a chuva:

"O ano é 2022. Debates grandiosos sobre criação de Liga, sobre modelos societários em clubes, mas nenhum esforço para que sejam modificados velhos hábitos do futebol brasileiro.

Inadmissível o árbitro de Juventude x Fluminense ter dado início a partida nas precárias condições do gramado, e, mais, ter dado seguimento após o aumento da chuva. Um desastre. Um verdadeiro desastre.

O mais "curioso" de tudo é que, somente após fazer 1 x 0 e de um primeiro tempo dentro d'agua, os funcionários do Juventude resolveram "drenar" o campo com rodos. Antes do jogo nada foi feito para amenizar as condições de disputa da partida.

Outros clubes já foram vítimas da mesma situação, que, aliás, só apequena o nosso futebol e mostra que estamos engatinhando no quesito profissionalismo e beleza do espetáculo como um todo.

Tanto Fluminense quanto Juventude tinham data livre e disponível para adiamento e remarcação do jogo, mas o que vimos foi um árbitro despreparado dar continuidade a uma partida dentro de uma piscina. Talvez ele possa e deva apitar esportes aquáticos. Futebol? Nitidamente não é o lugar onde deveria. Faltou bom senso.