Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que minha mãe peitou a proibição de que mulher não pode jogar bola

crianças jogando futebol - monkeybusinessimages/Getty Images/iStockphoto
crianças jogando futebol Imagem: monkeybusinessimages/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

08/05/2022 11h23

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Eu tinha sete anos, estava no pré-primário de uma das escolas mais tradicionais de São Paulo - que existe até hoje - e minha maior motivação para ir às aulas não era juntar as letras, mas jogar bola. Por isso, recusava rigorosamente a opção "saia" do uniforme, e isso deixava minha mãe maluca. Minhas irmãs, menores do que eu, amavam a opção "saia", como também amavam fazer penteados para ir à escola: rabo de cavalo, maria-chiquinha, tranças. Eu recusava esses também. Primeiro porque não durariam durante os jogos. Depois porque meu sonho era ter o cabelo bem curto para não precisar pentear.

Essas minhas manias deixavam minha mãe frustradíssima. Mas não meu pai. Ele entendia perfeitamente a paixão que a filha mais velha sentia pelo jogo. Era uma paixão que ele tinha cuidadosamente transferido a mim - e ele se orgulhava disso.

Já minha mãe, se pudesse escolher, teria escolhido que eu, no recreio, fizesse o que todas as demais meninas faziam e fosse brincar de boneca. Mas ficar numa sala escura cantando parabéns para um brinquedo inanimado não me seduzia em nada. Eu achava, aliás, as bonecas uma coisa meio assustadora.

Então, motivada a jogar bola no recreio com meus amigos, eu ia feliz para as aulas. Mas num certo dia eu fui tirada do jogo pela diretora e por uma das professoras. Elas se aproximaram da quadra e, sem se preocupar com a interrupção, me chamaram num canto. Ali, me informaram que a partir daquele momento eu deveria passar o recreio brincando de bonecas. Me levaram pelas mãos para uma sala escura onde estava sendo celebrado mais um aniversário de uma das dezenas de bonecas. Eu sentei num canto, abaixei a cabeça e chorei.

Sabia que, em casa, não adiantaria nada contar para minha mãe. Ela certamente concordaria com aquilo, preferiria me ver brincar de boneca como faziam minhas irmãs. Então, voltei para casa calada e cabisbaixa. Minha pequena e curta vida estava acabada.

Hoje entendo que o que passei é extremamente violento. Muitos recados me foram dados com aquele gesto. E todos eles eu internalizei e levei para a vida.

Que existam "coisas de menino" e "coisas de menina" já é em si uma determinação violenta, uma arquitetura social perversa, uma tecnologia de opressão e de controle do sexo e da sexualidade que serve para fazer com que as coisas permaneçam como estão e beneficia, portanto, os mesmos de sempre.

Em casa, minha mãe, me vendo triste, quis saber o que houve na escola. A princípio em me recusei a contar. Mas ela me infernizou e eu então falei. Não me esqueço a expressão em seu rosto. Era uma mistura de raiva com indignação com vontade de chorar. Vendo que ela não havia reagido bem, tentei minimizar o episódio, mas dessa vez quem calou foi ela.

No dia seguinte, me arrancou da cama mais cedo e, sem dizer nada, me colocou no carro. Na porta da escola, em vez de me deixar entrar, me segurou e disse: vou estacionar e entrar com você.

Eu não podia antecipar o que estava para acontecer. Ela me arrastou para dentro da escola, me levou para a diretoria, abriu a porta sem pedir licença e disse que eu iria jogar bola quando e como quisesse. E que se me tirassem outra vez de uma partida, ela me matricularia em outra escola e faria meu pai - que era jornalista - colocar a matéria no jornal.

Nunca mais eu deixei de jogar bola.

Minha mãe precisou de um tempo para entender quem eu era. Foi negociando esse entendimento porque me amava, mas nem sempre foi fácil para ela. Em minha memória, nos meus jogos de bola até o final da minha adolescência, ela esteve sempre na arquibancada berrando, torcendo e brigando com quem falasse qualquer coisa de mim.

Houve um jogo, eu já nos meus vinte e tantos anos, em que uma menina me bateu e eu não pude revidar porque me seguraram (não me orgulho disso, apenas relato a tentativa de revidar). Antes da bola voltar a campo eu escuto os gritos: "segura a mãe da Milly! Segura a mãe da Milly". Minha mãe tinha entrado em campo para bater na menina.

Minha mãe está com 84 anos. Tem quatro filhos e dez netos. Moramos em cidades diferentes mas falamos todas as noites antes de dormir. Semana passada, achei a voz dela cansada, perguntei por que e ela me disse que tinha passado o dia com netos, levando e buscando, brincando e cozinhando. Eu falei: nossa, mãe, pega mais leve. E ela: minha filha, eu não tenho herança nenhuma para deixar para vocês. A única coisa que posso deixar são memórias. Então, eu quero que, depois da minha morte, vocês falem muito de mim.

Assim será. Porque memórias não faltarão.

Sobre a proibição do futebol feminino no Brasil que durou mais de 40 anos, o decreto-lei de 1941 dizia

"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país".

Por causa de mulheres petulantes como minha mãe, a lei foi derrubada em 1983.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL