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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como Real Madrid e Fortaleza apontam caminhos possíveis

Torcida do Fortaleza durante partida contra River Plate no Castelão - Lucas Emanuel/AGIF
Torcida do Fortaleza durante partida contra River Plate no Castelão Imagem: Lucas Emanuel/AGIF

Colunista do UOL

06/05/2022 13h49

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Numa mesma semana, duas histórias futebolísticas podem ajudar a gente a compreender um pouco o que estamos fazendo aqui.

Em Madrid, o Real virou um jogo impossível e levou a torcida a um delírio coletivo. Em Fortaleza, embalado por uma torcida em transe, o Leão mostrou à América do que é feito.

No Castelão, já na apresentação quase sempre tediosa do hino nacional, o estádio lotado deu seu recado: ao final da música, seguiu cantando alto e forte. Até aí, já vimos isso antes. Durante a Copa do mundo no Brasil a cantoria emendada ao fim da primeira parte do hino era constante. Mas há cantorias e cantorias.

A da Copa era ilustrada por uma seleção visivelmente fora de compasso na vibração. Tudo parecia meio forçado, meio exagerado, meio falso. Nas cadeiras, um público com poder aquisitivo para pagar o preço abusivo dos ingressos e que se autorizava a ofender uma presidente legítima com a mesma força com a qual haviam cantado o hino. As notas não soavam afinadas.

O que se viu no Castelão na noite de 5 de maio de 2022 não tinha nada a ver com o que se viu nos estádios em 2014. O que se viu dessa vez no Castelão foi uma contagiante insanidade coletiva. Ao final do transe ficou fácil enxergar a perplexidade do time argentino, o rival da noite. Jogadores do River se entre-olhavam como quem se pergunta onde estavam e o que tinha acabado de acontecer ali.

A diferença deles para os jogadores do Fortaleza, igualmente impactados, era a de que os que vestiam a camisa tricolor sabiam exatamente onde estavam e o que foram fazer ali. E eles levaram essa potência para o jogo.

Em campo, dois times que se equivaliam em tamanho, mas um Fortaleza que jogava com mais atitude, mais personalidade, mais desenvoltura. Durante os primeiros 15 minutos, o time do River esteve atordoado, chacoalhado, amedrontado. Depois, já perdendo por um a zero, foi capaz de se reorganizar. Mas é certo que aqueles que ali estiveram jamais esquecerão o que viveram.

Ecos dessa vibração vieram da capital espanhola, palco de uma das mais grandiosas viradas da história do futebol. Acho que poucos discordariam que não haveria a virada do Real pra cima do poderoso City se o jogo não estivesse sendo realizado aos pés de milhares de madrilhenos enlouquecidos. Uma torcida que não desistiu de cantar e de apoiar, mesmo sabendo que sonhava com o impossível.

O que se percebe é que o jogo atravessa a arquibancada e com ela dialoga constantemente. Diante de um estádio lotado e terreirizado, tudo passa a ser possível. Nessas circunstâncias, pouco adianta se apegar ao concreto, aos fatos, às estatísticas. São esses os ambientes que podem criar o que a gente chama de milagre.

Vendo esses dois jogos eu pensei na história contada pelo mitólogo estadunidense Joseph Campbell no livro "O Poder do Mito". Escutando palestra de um monge no Japão, um filósofo que estava na plateia, ao final, se aproximou do monge e disse: eu entendi o que você disse, mas não pude elaborar qual a sua teologia, qual a sua filosofia. E o monge, depois de pensar um pouco, respondeu: "Não acho que temos uma filosofia. Não acho que temos uma teologia". Atordoado, o filósofo insistiu: mas então o que vocês fazem? E o monge respondeu: "nós dançamos".

Numa mesma semana, as torcidas do Fortaleza e do Real nos disseram isso: dancem, cantem, enlouqueçam. A partir dessa entrega apaixonada que se basta nela mesma, tudo pode acontecer.