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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Torcida do Cruzeiro acorda para a triste realidade de uma SAF

Torcida do Cruzeiro apoia o time na Arena Independência  - Alessandra Torres/AGIF
Torcida do Cruzeiro apoia o time na Arena Independência Imagem: Alessandra Torres/AGIF

Colunista do UOL

25/04/2022 17h11

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Em comunicado feito pelas redes sociais, a Máfia Azul, uma das maiores organizadas do Cruzeiro, escreve: "o Cruzeiro não é uma empresa, não é apenas uma vitrine para negócios, é a paixão de mais de 9 milhões de torcedores! Somos um clube gigante e vencedor!"

Pois é. O Cruzeiro é gigante, é vencedor, é paixão, é o time de quase dez milhões de pessoas. Tudo isso está corretíssimo. A parte equivocada é: "não somos uma empresa, não somos vitrine para negócios". A realidade diz diferente: a partir do momento em que o clube aceitou entrar na aventura de virar uma SAF ele passou a ser, oficial e tecnicamente, uma empresa e, como toda e qualquer empresa, um grande balcão de negócios. Uma empresa só existe para isso, não há nenhum outro motivo para que ela exista.

Já escrevi bastante sobre por que rejeito as SAF e vou seguir falando até que de duas, uma: ou as SAF morram ou eu mude de ideia. Essa segunda opção eu consideraria ainda mais remota do que a improvável morte das SAF, ainda que deva dizer que ambas, obviamente, existem.

Um time de futebol não é uma empresa. Time de futebol é instituição social. Ele trabalha com paixão, com a circulação de afetos. Ele não existe para dar lucro, ele existe para construir sujeitos, para tecer relações, para socializar cidadãos, para mobilizar amor. Uma empresa está se lixando para tudo isso. Uma empresa quer dar lucro para seus acionistas ao custo que for. Não me venha com poesia, eu quero meu lucro.

Nesse ponto da reflexão tem sempre alguém que fica tentado a dizer que é melhor virar SAF do que seguir do jeito que estava. De fato, o jeito que estava, o jeito como o Cruzeiro foi tratado nos últimos anos por executivos que diziam amar as cores do clube, é abominável. Mas daí a achar que a solução é concentrar mais poder na mão de menos pessoas e transformar uma paixão num objeto empresarial é maluquice.

O Cruzeiro pertence ao seu torcedor e a sua torcedora. O Cruzeiro é uma paixão que deveria servir a quem construiu sua subjetividade usando esse amor como ferramenta. O poder deveria ser alargado para acomodar cada vez mais sua majestade, a torcedora e o torcedor.

E torcedor não se chama sócio. Criar o "sócio-torcedor" é fazer um recorte de classe na massa de apaixonados, e isso não me parece justo. Quem tem mais dinheiro ama diferente? Só vale quem pode pagar? Só tem importância quem pode gastar?

Transformar torcedor em sócio é parte do esquema liberal que vê tudo e todos como empresas, como gestão, como planilhas. Torcedor não é sócio, nunca será. A linguagem induz a esse caminho cheio de objetificações, no qual palavras como eficiência, performance, lucro, gestão, custo-benefício fazem todo o sentido.

Futebol não é acima de tudo um modelo matemático. Futebol é história, é filosofia, é sociologia, é metafísica. A matemática entra para acomodar essas verdades.

Então, Máfia Azul, vocês estão ao mesmo tempo certos e errados. O ideal seria ter impedido a venda do Cruzeiro. Agora, time vendido, resta lutar para que a lógica empresarial não exerça seu destino que é exclusivamente o de pensar no bolso dos acionistas antes de qualquer outra coisa. Se para fazer isso for preciso derrubar árvores, acabar com a água, exterminar povoados, inundar civilizações, queimar florestas e triturar paixões, assim será.