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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Até onde vai o poder das torcidas?

Torcida do Flamengo no Maracanã no jogo contra o Corinthians, pelo Brasileirão 2021 - Alexandre Vidal/Flamengo
Torcida do Flamengo no Maracanã no jogo contra o Corinthians, pelo Brasileirão 2021 Imagem: Alexandre Vidal/Flamengo

Colunista do UOL

08/04/2022 14h49

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Torcedores de Corinthians e Flamengo estão indignados com seus elencos. A avaliação é a de que os jogadores não estão honrando a camisa. "Ou joga por amor, ou joga por terror", diz nota da Gaviões.

Gostaria de falar algumas coisas a respeito desse momento que vivem os times de maior torcida do Brasil.

A primeira coisa que precisa ser dita é que a frase final da nota da Gaviões não deveria ter sido escrita. Ninguém joga por terror. Nem o torcedor mais fanático pode acreditar que um profissional vai jogar "por terror". As palavras são duras e dão à nota um tom de ameaça que é desnecessário. Mobilizar pelo medo é o que fazem os poderosos desse país, contra os quais a Gaviões sempre se colocou. Usar ferramentas como a deles não é do jogo; ou não deveria ser.

A segunda coisa que gostaria de dizer é que não seria justo a gente cair no lugar comum de tomar o todo pela parte, como sempre acontece quando se fala das organizadas. Como em qualquer recorte social, há os mais violentos, os pacifistas, os negociadores, os deixa-disso, os pavio-curto, os "vai dar tudo certo". O que acontece com minorias políticas é que a parte sempre responde pelo todo. "Olha lá aquelas duas mulheres brigando. Mulher briga demais!" Quando são homens brigando essa análise não é feita - muitas vezes não é sequer percebido. Imaginem se, na cerimônia do Oscar, duas mulheres tivessem se estapeado no palco. Estaríamos até agora escutando elaborações sobre como mulheres são rivais umas das outras. Mas, como a briga envolveu homens, nada a respeito disso foi dito. Não tomar o todo pela parte é um exercício, e ele precisa ser feito.

Em terceiro lugar: não está em questão a importância da Gaviões para a história do Corinthians. A Gaviões, e outras organizadas, têm participação essencial na construção do que é esse time e, porque é mais do que uma simples torcida organizada, tem menção honrosa na história dessa nação.

Assim como as maiores organizadas do Flamengo. Quem já viu um jogo do Flamengo no Maracanã sabe do que essa torcida é capaz. Quem já viu o Flamengo longe dessas organizadas e entregue ao torcedor que só aparece em finais disputadas bem longe de casa, sabe perfeitamente o que o time perde.

Por tudo isso, não sou do grupo das pessoas que acreditam que abrir as portas para escutar a reclamação da torcida é uma aberração. Escutar o que as torcidas organizadas têm a dizer faz parte desse negócio chamado futebol. Se não escutarem a torcida vão escutar quem? Agentes? Empresários? Advogados?

O problema começa com o contexto em que isso se dá.

O maior patrimônio de um clube, do grande ao pequeno, é sua torcida. Seria prudente, portanto, tratá-la como tratamos alguma coisa sagrada. Mas os clubes não fazem isso. A cada dia que passa, afastam mais e mais o torcedor de baixa renda do dia-a-dia do time.

Hoje, o torcedor interessa na medida em que pode consumir: camisa, ingresso, canal fechado de TV, canal do time? É uma maluquice o que fazem os clubes com seu torcedor e torcedora, que hoje passaram a ser chamados de "sócios". Sócios em quê? É uma linguagem que apequena a experiência, que faz um recorte de classe que, lá na frente, vai se mostrar falho.

Uma vez li de um especialista em hoologanismo dizendo que, quando a violência das torcidas inglesas foi estudada na década de 90, um dos diagnósticos foi o de que quando se trata o torcedor como um bicho ele tende a se comportar como um bicho. Não por acaso, a violência no futebol inglês correu solta durante os anos de dilaceramento do tecido social promovido por Margaret Thatcher.

Talvez não seja, portanto, por acaso que estamos vendo a violência crescer no futebol brasileiro. Uma população desamparada, tratada como bicho, tenderá a se comportar como tal.

Seria interessante se houvesse um jeito menos violento, menos masculino, de lidar com esse assunto. O tema envolve, mais do que o jogo, os afetos que movimentam o jogo. Estamos falando de paixões, de dores, de frustrações, de expectativas. Estamos dentro de um barril de gasolina e seria recomendável não acender um sinalizador perto dele.

Receber a torcida em ambiente de menos masculinidade tóxica, um ambiente onde todos pudessem falar e, especialmente, escutar. Colocar a torcida em seu devido lugar, um lugar onde sua importância é reconhecida. Colocar as camisas, e seus respectivos pesos, em perspectiva. Deixar de fora desse encontro qualquer coisa que não diga respeito à paixão: empresários, agentes, advogados etc.

Já em relação às ameaças de morte dirigidas a Cassio seria preciso reconhecer que estamos falando de um caso de polícia. Eu, no lugar dele, depois de fazer tudo o que fiz pelo clube, iria embora hoje mesmo. Não se trata assim um heroi. Não se trata assim ninguém, é evidente, mas colocar um ídolo nesse lugar é, além de perverso e criminoso, extremamente estúpido.

Por fim, a nota da Gaviões diz que o passado não entra em campo. Eu argumentaria justamente o contrário. Nós somos as nossas histórias. Lembrar, celebrar, honrar. Talvez o presente fosse mais justo se compreendessemos isso.