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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: As violências, o futebol e a vida

Torcedor do São Paulo invade campo na Copinha e tenta agredir jogador do Palmeiras - Diogo Reis/AGIF
Torcedor do São Paulo invade campo na Copinha e tenta agredir jogador do Palmeiras Imagem: Diogo Reis/AGIF

Colunista do UOL

23/01/2022 13h02

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Assisti horrorizada à invasão de campo nos minutos finais do jogo entre São Paulo e Palmeiras. Não gosto de colocar todas as invasões de campo num mesmo balaio porque não acho justo que o sujeito que entra como o intruso peladão e driblando o policiamento vai sempre contar com uma miga da minha simpatia. O cara que invade para pacificamente protestar contra injustiças sociais também.

Lembro que uma vez, comentando um empate pavoroso do Corinthians num programa de TV, disse que a coisa menos tediosa da partida tinha sido a invasão de um rapaz que saiu driblando o policiamento com muita categoria até ser derrubado e fui gentilmente colocada na geladeira por dizer aquilo. Sigo concordando comigo e acho que nem toda invasão é igual.

Mas algumas invasões são aterrorizantes e a de ontem foi especialmente. A imagem da faca na mão do juiz deixou claro o que poderia ter acontecido. Um horror ainda maior foi evitado seja lá por qual forças misteriosas que estivessem em atuação na noite de ontem.

A PM falhou na revista, claro. Os torcedores invasores descontrolados e agressivos falharam na conduta. O que jogou a faca em campo falhou em tudo. Essas são as análises óbvias e imediatas. Mas em casos como esse minha tendência é a de tentar alargar o debate.

O que a gente entende por violência é isso o que vimos pela TV no sábado à noite. Facas, brigas, correria, desespero.

O que a gente não entende por violência é, por exemplo, as revistas que mulheres tinham que enfrentar antes de nosso controle na entrada ser feito por policiais femininas. Como torcedora, meu corpo já foi invadido inúmeras vezes antes mesmo de eu conseguir chegar à arquibancada. Isso também é violência.

Não colocamos na conta da violência o transporte precário para que o torcedor e a torcedora cheguem aos estádios. Não chamamos de violência quando, numa arquibancada, numa cadeira cativa, em qualquer espaço de um estádio, o corpo de uma mulher é sexualmente invadido por aqueles que usam a mesma camisa que a gente, o que revela como o machismo e a misoginia se sobrepõe à parceria clubista.

Não entendemos por violento o fato de trabalhadores e de trabalhadoras terem que se amontoar em ônibus e vagões de metrô todos os dias para chegarem ao trabalho. Nem enxergamos como violência a liberdade que empresas têm para aumentar o preço de ítens básicos e primordiais para garantia da saúde, como alcool gel, máscaras e testes de laboratório, durante uma pandemia.

Nada disso entendemos como violência - embora todas sejam exatamente isso. Uma vez, estudando uma pesquisa encomendada pelo governo britânico sobre os violentos torcedores conhecidos por hooligans, li as palavras de um dos pesquisadores: se você trata o torcedor como um bicho, ele vai se comportar como um bicho. A lógica vale para além dos redutos dos estádios: vale para os cidadãos e para as cidadãs também. Trate-nos como animais selvagens e como animais selvagens nos comportaremos.

Trago esses exemplos porque acredito que as referidas violências façam parte de uma mesma estrutura e que a luta deve ser para ter essa consciência.

Não existe uma solução fácil para problemas complexos. Vivemos um dos piores momentos de nossa história, que já é uma história de horrores e de guerras embora adoremos pensar em nós mesmos como um país alegre e cordial. Não somos.

O Estado brasileiro sempre foi grotescamente violento e nossa democracia nunca foi de fato uma democracia porque não se pode chamar de democracia se segurança e justiça só podem ser acessadas por uma minoria rica e branca. Uma parcela enorme da população brasileira ainda não conheceu o que se chama livremente de democracia.

Não podemos analisar as cenas horrorosas que vimos ontem sem alargar o debate. Somos fruto de uma sociedade que, a cada dia que passa, se desintegra um pouco mais. Não há como separar a violência da semi-final da Copinha dessa realidade.

Sei que países considerados "desenvolvidos" também têm sua cota de violências, mas não acho que possamos comparar ao que acontece por aqui.

Claro que mesmo quando chegarmos a ser um país justo e menos desigual ainda teremos que lidar com a masculinidade tóxica e deslocada, um tipo de performance de gênero que considera incapaz ver seu time ser derrotado sem sentir ganas de entrar em campo e dar voadoras em quem estiver pela frente. Para que homens se comportem como pessoas decentes teremos que dar um passo maior e combater o machismo e a misoginia que, ao lado da desigualdade, são os combustíveis dessa masculinidade violenta, descontrolada, histérica e chiliquenta.

Nesse dia, quem sabe possamos voltar a frequentar os estádios sem medo.

É por isso que o feminismo não é uma luta exclusiva das mulheres, muito menos uma declaração de guerra aos homens. O feminismo, quando completar sua jornada, terá nos libertado a todas, todos e todes - inclusive dentro dos campos de futebol.

Sobre o tema da violência, em novembro escrevi o texto "Dias piores virão".