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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Futebol pode, Carnaval não pode. Qual o critério?

Futebol e carnaval sempre caminham lado a lado na Gaviões - Mariana Pekin/UOL
Futebol e carnaval sempre caminham lado a lado na Gaviões Imagem: Mariana Pekin/UOL

Colunista do UOL

22/01/2022 15h50

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Desde 2020 estamos vivendo num outro mundo. Nada parece igual e tudo indica que não voltaremos ao modo antigo de vida, o que pode ser, afinal, um bom negócio porque o modo antigo de vida não era bom, nem decente e nem digno para a maioria.

Mas para que a gente chegue lá vai ser preciso aproveitar esses anos de tanto sofrimento para buscar algumas respostas para problemas que estão escancarados, e que antes conseguiam, com esforço, se esconder.

No começo da pandemia, nosso futebol foi interrompido durante alguns meses. Os "donos" desse jogo nunca gostaram muito da interrupção e sempre advogaram a favor da volta a despeito dos riscos. Voltamos a jogar, voltamos aos estádios, mas agora com máscaras. Aprendemos (ou pelo menos alguns de nós aprendemos) que vacinação é pacto coletivo porque esse vírus não vai parar de se transformar até que a vasta maioria esteja vacinada.

Porque temos uma certa cultura em vacinação e fomos nos vacinar ainda que o fascista que está no poder berrasse sem parar para que não fôssemos, a nova variante não nos pegou desavisados. Aprendemos, de alguma maneira, a existir andando por aí com nossas máscaras.

Com sorte, chegamos a 2022 e, como acontece todos os anos, com o novo ano vem o Carnaval. Pouco antes dele, chegou a Omicron e, outra vez, a tensão com os picos de contágio. Voltou a ser prudente que algumas medidas mais rígidas de controle sanitário fossem tomadas. O Carnaval, então, foi cancelado ou adiado. Parece fazer sentido, claro. Só que é também importante que algumas dúvidas sejam esclarecidas.

Carnaval é evento popular e, ao lado do futebol, formador de nossa identidade nacional. Existe uma multidão de pessoas que vive do Carnaval. São trabalhadores e trabalhadoras que dependem dessa renda para passar o ano. Com o cancelamento dos eventos de rua e populares, essas pessoas estarão no vazio. Estamos falando de catadores, de gente que faz fantasia, carros alegóricos etc.

Trata-se de um grupo de pessoas que já teve que se virar para viver sem o evento em 2021 aceitando um auxílio emergencial de valores ridículos. Essas pessoas estão recebendo a informação de que a festa foi, por segurança, cancelada ou adiada. Em contrapartida, elas estão também sabendo que as grandes festas promovidas pela iniciativa privada seguem agendadas para a data original. Pode isso? Aparentemente sim.

Diante dessa incoerência, é necessário que algumas questões sejam postas.

Haverá transporte público em excesso para que os trabalhadores das festas privadas não se aglomerem indo e vindo do serviço? Aglomerar para servir rico pode mas para sambar de graça na rua não? Aglomerar para trabalhar nos eventos públicos na rua também não pode? Haverá distribuição gratuita de máscaras PFF2 para os trabalhadores que vão servir as festas privadas? Os trabalhadores que dependem do Carnaval de rua para sobreviver terão algum auxílio emergencial?

Como disse o historiador Jones Manoel em um vídeo sobre o tema, como explicar para a senhora que faz fantasia que esse ano, outra vez, ela talvez não trabalhe por causa da aglomeração se ela vê o filho dela todos os dias indo e vindo do trabalho em uma condução cheia de gente esmagada? Como explicar a ela que vai ter bloco privado na rua mas não vai ter o tradicional Galo da Madrugada. Como a gente pode começar a tentar entender isso?

Os caminhos são muitos, e eles passam todos por compreender em que pilares esse país foi formado, como lidamos com corpos que julgamos descartáveis, como as decisões são tomadas por interesses financeiros e não humanitários.

Dito isso, o debate não deveria ser se deve ou não haver Carnaval (isso fica com os epidemologistas), mas sim o que faremos pelos que dependem do Carnaval para sobreviver quando o Carnaval é cancelado ou adiado?

Não havendo Carnaval outra pergunta que deve ser feita é: por que Carnaval não pode, mas futebol pode? Alguns governos estaduais reduziram o número de assentos disponíveis a cada jogo, verdade, mas o calendário segue valendo para o futebol nacional, certo?

Carnaval não pode, mas pode missa?, pergunta sagazmente o historiador Luiz Antonio Simas no Twitter. Pois é. Missa pode.

Carnaval não pode, mas pode show de música sertaneja? Tem um mega evento programado para os últimos dias de fevereiro no Rio chamado CarnaRildy. Vai Anitta, vai Thiaguinho, vão Maiara e Maraísa.. isso pode? Até onde apurei, pode sim senhor porque cancelado ainda não foi.

São tempos difíceis e cheios de revelações. Hora de fazermos perguntas porque na busca por respostas entenderemos muitas coisas importantes sobre quem somos.

Não se trata aqui de defender a realização do Carnaval, eu não teria como fazer isso. Se trata de sonhar com alguma coerência e de sonhar com a possibilidade desse momento cruel de nossa história pelo menos conseguir escancarar alguns de nossos maiores e mais profundos problemas. Sonhar, quem sabe, com alguma transformação.