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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Robinho, Cuca e a imprensa no espelho

Robinho quando jogava no Guangzhou Evergrande em 2015 - Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images
Robinho quando jogava no Guangzhou Evergrande em 2015 Imagem: Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images

Colunista do UOL

20/01/2022 11h11

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Fui tomar um café com um amigo logo depois que a justiça italiana condenou Robinho por violência sexual; uma notícia que estava em destaque em todos os portais. Meu amigo chegou falando do caso. Eu disse a ele que pelo menos agora essas histórias estavam sendo comentadas e citei o caso de Cuca, condenado pelo mesmo crime. Meu amigo, um cara informado, atento, interessado e que adora futebol, disse: Que Cuca? Eu respondi que estava falando do Cuca treinador e ele: Jura? Não sabia.

Acho que isso resume muito do que quero dizer, mas vou dizer mesmo assim.

Tratamos de forma desigual a violência sexual cometida por negros e por brancos. Temos, claro, que dizer que o estupro pelo qual Cuca foi condenado aconteceu nos anos 80, e isso faz diferença porque estamos aqui comparando ele a uma condenação que aconteceu ontem. Ok. Existe nessa relação de tempo uma diferença importante, mas ela não afeta a gravidade das condenações. Até porque nenhum dos dois referidos condenados se desculpou. Muito pelo contrário.

Ressalva feita, precisamos nos perguntar por que todos, mesmo aqueles que não gostam de futebol, sabem de Robinho e por que poucos, incluindo aí aqueles que gostam de futebol, sabem de Cuca.

Os crimes foram rigorosamente iguais: condenados por participarem de estupro coletivo. Com um detalhe ainda mais macabro no caso do treinador: a vítima tinha 13 anos na época.

Treze anos. (Escrevi sobre isso aqui)

No livro (ainda sem tradução no Brasil) "The Right To Sex" (O Direito ao Sexo em tradução livre) de Amia Srinivasan me deparei com uma estatística reveladora. Entre as falsas acusações de estupro (que ficam na ordem de 3% dos casos) a maior parte delas é feita por homens. São homens que acusam outros homens de terem estuprado uma mulher. Adivinhem quem são a maior parte dos caras falsamente acusados de terem praticado algum tipo violência sexual? Homens negros. E a cor da pele dos que falsamente acusam? Branca.

Temos então que começar a falar de interseccionalidade e desse cruzamento de opressões, assunto abordado por Audre Lorde em seu texto "Não existe a hierarquia da opressão" traduzido pelo Portal Geledés.

A intenção aqui não é a de passar nenhum tipo de pano para Robinho. O episódio é abjeto, o comportamento dele durante os anos em que o processo durou foi grotesco, a linha de atuação da defesa, tentando culpar a vítima, foi desumana. Nada no caso que envolve Robinho pode ser relativizado. Acho apenas que temos que falar do nosso comportamento enquanto imprensa e nos perguntar por que agimos assim.

No silêncio de nossos quartos, num desses momentos em que nos encontramos sozinhos, temos também que nos perguntar por que é mais fácil acreditar que Robinho é culpado mas nem tão simples culpar Cuca? Por que a raiva que sentimos por Robinho é imediata, mas a que sentimos por Cuca nem tanto? Por que é aceitável chamar Cuca para uma mesa redonda e rir com ele como bons amigos e inimaginável convidar Robinho para falar da rodada? Por que conseguimos mais alegremente associar Robinho à imagem do estuprador e Cuca segue sendo poupado dessa associação?

Por que quando Robinho foi contratado pelo Santos em 2020, já condenado em duas instâncias na Itália, os patrocinadores se posicionaram contrários, mas não houve barulho de patrocinador quando o mesmo time contratou Cuca na temporada anterior, e nem quando o Galo fechou com o treinador em 2021? (Na época apenas parte da torcida feminina se pronunciou e foi ignorada).

Racismo e machismo bebem de uma mesma fonte e se articulam socialmente de uma mesma forma. Estamos infectados e infectadas de ambos porque eles estruturam nossos modos de vida desde o nascimento e, depois disso, seguem nos orientando durante todos os dias. O exercício para que a gente se livre deles é cotidiano e não é dos mais fáceis. Requer que a gente se olhe no espelho e veja coisas nem tão bonitas. Requer transformações que são da ordem do íntimo mas também da ordem do público. Requer coragem para corrigir amigos queridos no momento em que for preciso. Requer atenção, disciplina e posicionamento.

"Eu sou eu e as minhas circunstâncias" escreveu José Ortega y Gasset. Todos somos nós e as nossas circunstâncias. Somos assim formados e, para citar um gênio, "Somos o que fazemos mas somos especialmente o que fazemos para mudar o que somos". (Viva Eduardo Galeano). Estamos sendo chamados a fazer mais. A hora é agora.

A luta não é um fim, ela é um meio e é simultaneamente travada em muitos campos de batalha; alguns privados, outros públicos. Nossa missão é uma só: seguir.