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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Para 2022 meu desejo é mais várzea e menos UEFA no nosso futebol

Especial Futebol de Várzea - Diego Padgurschi/UOL
Especial Futebol de Várzea Imagem: Diego Padgurschi/UOL

Colunista do UOL

01/01/2022 15h54

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Todo mundo que gosta de futebol gosta do futebol de várzea. Não acredito que seja possível ser brasileiro e amar esse esporte sem já ter se encantado pelo que acontece na várzea desse Brasil.

É nos campos periféricos, de terra batida e de arquibancada ausente, que o futebol brasileiro se encontra com o que é na alma. Longe de ser uma ode à precariedade, a várzea fala sobre um tipo de paixão que faz enxergar em qualquer canto uma possibilidade de campo e, com ela, a chance de encontros, jogos, emoções.

O drible, esse recurso tão nosso, nasceu numa várzea da vida, assim como alguns de nossos maiores craques.

É no uniforme sujo de terra e de lama que a gente se entende como torcedores e como jogadores. Só se tira a várzea do que somos pagando um preço muito alto, que é o da zumbização do futebol brasileiro.

Quanto mais emulamos o futebol Europeu e sua organização limpinha de cacos e de resíduos do que alguns chamariam de alma, mais nos distanciamos de uma essência que seria bom jamais perdermos de vista.

Com a limpeza a lá UEFA, tudo passa a ter um protocolo: a entrada em campo, os hinos, os cumprimentos, a forma de jogar, as entrevistas nos intervalos e as entrevistas ao final das partidas. O drible, essa jogada que é puro improviso e que é, assim, o avesso de um protocolo, passou a ser ofensa e, em certos casos, punível com cartão.

A necessidade de tentar controlar os diversos aspectos do futebol tem uma dimensão de ridículo porque, primeiro, as coisas não podem ser controlados e, segundo, tudo o que fica sob a guarda da rigidez, da domesticação e do autoritarismo parece sempre meio falso, meio vazio, meio sem vida - e bastante cafona.

Chegamos a um ponto de nossas existências que as pessoas parecem acreditar piamente que só há um caminho para o que chamam de progresso, de civilização, de desenvolvimento. Fazem isso sem sequer questionar se essas palavras ainda fazem algum sentido. O que é progresso? É viver como se vive na Europa? Nos Estados Unidos?

Faz parte do desenvolvimento, portanto, criar campos de refugiados que são campos de morte e de indignidade? Construir uma sociedade baseada no consumo desenfreado? No acúmulo? Na exploração da natureza?

Num tipo de futebol que é o mais perfeito simulacro da desigualdade social no mundo: uma dúzia de magnatas dando as ordens, centenas de milhares de outros obedecendo?

Alguns com dinheiro para fazer o que bem entenderem, desde passear em foguetes pelo Cosmos até montar um time que poderia ser a seleção das galáxias, e outros sem ter o que comer, o que vestir e, portanto, desprovidos até da possibilidade de bater uma bola?

Progresso é estádio passar a se chamar arena, passe virar assistência, correr virar flutuar? Nunca mais alguém vai renovar nosso verbo e inventar uma linguagem mais varzeana tipo "o costado da zaga"? (Viva Luciano do Vale) ou "eu hoje vou se consagrar"(Viva Milton Leite).

Será que não há outras modalidades de vida, de linguagem, de desejo e de jogo?

Será que não temos um jeito de misturar mais várzea nessa máxima organização sem alma da UEFA? Uma alternativa que não seja exatamente uma, mas que seja radicalmente distante da outra dado que a outra não nos representa culturalmente?

Enfim. Fica aqui meu desejo para 2022: mais várzea, menos UEFA.