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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Esse foi ano pra gente entender quem é a grande estrela do futebol

Jogadores do Bayern de Munique comemoram título alemão em estádio vazio - Stuart Franklin/Getty Images
Jogadores do Bayern de Munique comemoram título alemão em estádio vazio Imagem: Stuart Franklin/Getty Images

Colunista do UOL

31/12/2021 13h08

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Dois mil e vinte e um foi o ano em que o futebol mundial foi privado de sua força máxima: a torcida presente. Foi ano pra gente entender que jogo em estádio vazio é jogo sem alma, sem vida, sem pulsação. Que não existe futebol sem que estejamos presentes. Do que importa Gabigol fazer um gol improvável e encantado se ele não tem para onde correr? Do que importa uma virada no último minuto de jogo se não temos como abraçar a pessoa estranha que está ao lado. Do que importa Hulk acertar um chute exuberante no ângulo se quando a bola estourar as redes não escutaremos aquela voz soberana vindo das arquibancadas?

Foi ano pra gente compreender que os novíssimos DJs de estádio pouco podem fazer pelo espírito do jogo. Que simular o grito de uma torcida jamais poderá se comparar ao grito real e presente de uma torcida. Que algumas coisas não podem ser imitadas.

Foi ano também pra gente entender que a elitização do futebol, esse processo que encarece o preço de todas as coisas em nome de mais lucro, é um fenômeno que, de certa forma, vai tirar do estádio um tipo de torcedor que não frequenta cadeiras cativas, tribunas especiais ou camarotes.

O geraldino é um tipo especial de torcedor, um maluco alucinado que canta e pula e vibra a despeito do que acontece em campo. Seu time pode estar perdendo, pode estar sendo eliminado, e ele seguirá em seu transe apaixonado.

As finais da Sulamericana e da Libertadores, nesses jogos únicos e longe de casa, imitando tudo o que se faz na Europa sem levar em conta o que somos culturalmente, mostraram o que vai ser o futebol se tudo o que houver num estádio forem ingressos a preços altíssimos. Uma torcida que precisa ser comandada pelo que o time faz em campo, e não uma torcida que é capaz de impactar o que o time faz no jogo. São formas muito diferentes de se torcer.

Torcidas como a do Vasco, do Cruzeiro e do Athetico Paranaense deram seus espetáculos de paixão vibrando mesmo diante do fracasso. Acho que poucos duvidarão de que se trata de um dos fenômenos mais bonitos do futebol: a torcida que entra em transe mesmo quando tudo está perdido.

As torcidas organizadas, sempre tão vilanizadas, estão sendo encolhidas em nome da elitização do futebol no Brasil. Sem elas, perdemos muito do que somos.

Futebol é, claro, jogo bom de se ver pela TV, mas futebol não é jogo que nasceu para ser televisionado. Ele nasceu para ser sagrado e o sagrado só acontece quando uma partida é realizada dentro de um estádio lotado e apaixonado que canta e vibra a despeito do que acontece em campo e, ao fazer isso, tem influência direta no estado emocional dos jogadores e, portanto, no andamento de uma partida.

Mas os investimentos hoje são feitos para que a transmissão seja um evento de forte apelo midiático e, evidentemente, de forte apelo publicitário: dezenas de câmeras, múltiplas formas de captar o som da torcida, música ao vivo nos intervalos em performances criadas para as câmeras e não para quem está presente, que mal vê ou escuta. Pouco ou nada é investido para que os ingressos sejam barateados, muito pelo contrário. E pouco se investe em formas econômicas de se chegar ao estádio, em segurança para quem vai ou no aumento da disponibilidade de assentos para pessoas de baixa renda.

É uma pena que a tal modernização do futebol deixe de lado quem realmente importa. E se a pandemia tiver que deixar algum rastro que seja a consciência de que, sem a torcida presente, o futebol perde sua força vital e, desse modo, está condenado.