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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Os estupros em nossas vidas de jornalistas

Jogadores do Atlético-MG festejam com o técnico Cuca o título do Campeonato Brasileiro 2021 - Jhony Pinho/AGIF
Jogadores do Atlético-MG festejam com o técnico Cuca o título do Campeonato Brasileiro 2021 Imagem: Jhony Pinho/AGIF

Colunista do UOL

16/12/2021 09h38

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Todas nós temos nossos casos de abuso, de assédio ou de estupro na memória. Algumas de nós guardam essas imagens em lugares muito profundos. Outras, mais à flor da pele. Mas todas temos e todas acessamos esse quarto escuro e frio no momento em que um homem condenado por algum desses crimes aparece na nossa frente. Não precisa ser o nosso abusador. Pode ser o abusador de qualquer outra mulher.

Nessa hora, existe uma parte de nossas vísceras que se contrai. Depois, vem uma pressão na altura do peito, seguida de aceleração dos batimentos cardíacos e de uma espécie de sensação de sufocamento.

Nós temos treinamento em passar por isso sem deixar que outros percebam o que estamos sentindo. Se fôssemos berrar a cada encontro desses, tudo o que se escutaria no mundo seria o barulho de nossas vozes. Contínuo, emendado um no outro, se arrastando há séculos por todos os cantos do planeta.

Conviver com a celebração desmedida que se faz ao treinador do Galo é entrar nesse túnel do tempo de nossas vidas. Em instantes, estamos de volta à cena dos abusos dos quais fomos vítimas. No rosto de Cuca, o rosto de nossos abusadores. Na voz de Cuca, a voz de nossos assediadores. No sorriso de Cuca, o sorriso de nossos estupradores.

Em 2021 a cobertura do jogo passou muito por Cuca porque ele é, sem vestígio para dúvidas, o melhor treinador do Brasil.

Mas Cuca é, além de um treinador de ponta, um homem condenado por envolvimento em estupro de vulnerável (pessoa com menos de 16 anos).

É recomendável ler essa frase com calma.

Condenado. Estupro. Pessoa com até 14 anos (a vítima tinha 13).

Caladas, escutamos narradores e comentaristas elogiarem Cuca como uma pessoa maravilhosa, educada, simpática, devota de Nossa Senhora, olha as medalhinhas dele, olha a camiseta em homenagem a Nossa Senhora, que cara incrível é o Cuca, veja como ele trata a mãe, as filhas, a neta, a esposa, como ele é gentil com as mulheres da vida dele. Que homem é o Cuca.

Tudo isso eu vi na TV, nos jornais e nos portais nos últimos dias.

Se querem contar a história de Cuca como homem - e não apenas como treinador - o mínimo que deveriam fazer, em nome de todas nós que já fomos, estamos sendo e ainda seremos abusadas, em nome de alguma decência, de alguma honestidade, de alguma ética, seria inserir uma referência à condenação por envolvimento em um caso de estupro.

"Ah, mas já faz 34 anos, esquece isso"

Se você tivesse sido estuprado quando tinha 13 anos você teria esquecido?

Aqui eu paro e peço encarecidamente para que o foco dessa história seja a nossa dor.

Nós não nos esquecemos dos nossos abusos. Jamais nos esqueceremos. Para sobreviver, a gente guarda eles bem guardados. Estão ali, viraram uma unidade de energia que, dependendo da ocasião, volta a explodir até se contrair outra vez e nos deixar respirar.

E a memória volta como a ponta de ferro quente perfurando nossas vísceras no momento em que vemos um homem condenado por envolvimento em estupro ser exaltado.

O que fazer, então?

Para começar, se querem falar do homem e não apenas do treinador, a história precisaria ser contada em sua totalidade. Seria o mínimo da decência.

Mas não é assim que tem sido feito.

Nós estamos bem ali ao lado deles enquanto rasgam elogios ao cidadão Cuca - estamos nos comentários, na narração, na produção, no figurino, nas câmeras, na maquiagem. Abaixamos a cabeça porque sabemos que não podemos fazer muito a não ser silenciar e, nesse momento, participar desse pacto macabro da masculinidade.

Como repórteres, temos que entrar nas salas das coletivas e testemunhar Cuca ser paparicado. Engolimos seco. Sentimos nossos corpos tremendo. Não há o que possamos fazer. Cuca é o homem da vez.

Enquanto ele responde sorridente ao colega jornalista, seguramos nossos microfones e pensamos na menina de 13 anos estuprada num quarto de hotel por jogadores do Grêmio em 1987, em Berna, na Suiça. Cuca condenado por estar entre eles.

Onde estará ela hoje? Resistindo como cada uma de nós? Cuidando de suas cicatrizes, como cada uma de nós? Lutando, como cada uma de nós? Como sua vida foi alterada pelo estupro? Como ela teve forças para seguir? Como nós temos forças para seguir?

Olhamos para as mulheres ao nosso lado nas coberturas esportivas. São poucas, mas estão lá. Pelo que terão passado? Quantos abusos? Quantos assédios? Quantos estupros? Quantas violências? Elas conseguiram superar? O que estão sentindo vendo Cuca ser idolatrado como homem?

Cuca é o melhor treinador do Brasil. É capaz de montar times competitivos mesmo com elencos medianos. Quando recebeu um elenco estrelado como o desse Galo encantado, fez o que fez.

Mas que tipo de sociedade passa por cima de envolvimento em estupro para celebrar um treinador excepcional?

Uma sociedade dentro da qual escrotizar mulher é parte aceitável do jogo.

Já tem gente da patente de Galvão Bueno sugerindo Cuca na seleção. Teremos na seleção um homem condenado por envolvimento em estupro que até hoje, 34 anos depois, se recusa a falar abertamente sobre a gravidade das questões ligadas ao caso? Se recusa a pedir perdão? Se recusa a dizer o que houve? Se recusa a abordar o tema da epidemia que é a violência contra a mulher no Brasil.

Vale isso, Arnaldinho?

Claro que vale.

O filho de Tite, curtidor de inúmeras postagens que celebram violência contra mulheres, está lá em berço esplêndido. O nepotismo, francamente, é quase uma benção diante dessa realidade escrota.

O crime de Cuca prescreveu. Ele não se apresentou para o julgamento e foi condenado sem estar presente. De quinze meses foi a pena. Dele e dos demais envolvidos.

É muito barato escrotizar mulher.

Cuca nega participação, torce a boca para falar do assunto e - ainda mais absurdamente - se faz de vítima.

Faz coisas que o advogado de defesa na época não conseguiu sequer ensaiar.

Palavras do advogado de defesa dos jogadores do Grêmio sobre o ocorrido em Berna, publicadas no jornal Zero Hora em 1987 e relembradas recentemente pelo Blog do Juca. Atenção porque essas palavras saíram da boca do advogado de defesa e não do de acusação:

"Um dos jogadores manteve relação sexual completa, outro apenas sexo oral, enquanto um terceiro fez carícias e o quarto foi um 'voyeur' conivente: apenas olhou", declarou Silveira Martins ao jornal Zero Hora do dia 31 de agosto de 1987. O depoimento da vítima disse que três jogadores a agarraram para que um deles a violentasse.

Depois do devido trânsito legal, a condenação da gangue foi por violência sexual contra pessoa vulnerável. A menina - vou repetir - tinha 13 anos.

Cuca acha que a vítima dessa história é ele, embora, nas raras vezes em que toque no assunto, seja incapaz de olhar nos olhos do interlocutor.

É possível a gente reparar erros hediondos como esse? Sim, tenho certeza que sim. Não acredito que haja algum entre nós que não possa ser reformado, não acredito em prisões, não acredito em vingança, não acredito em punitivismo nem em justiciamento.

Mas para tanto seria necessário, antes de qualquer coisa, reconhecer que houve um erro e um crime. Não se aprende nada na vida sem essa premissa.

E, no caminho da reparação, falar com honestidade sobre o aprendizado e se aliar à luta para que nunca mais o corpo de uma mulher seja invadido, abusado, dilacerado.

Como se faz isso? Há muitas formas. Cuca poderia, por exemplo, dizer:

"Hoje tenho três filhas e sou um homem consciente de como o machismo e a misoginia ferem e matam. Entendo que vivemos sob uma cultura que minimiza as práticas cotidianas de assédio, abuso e estupro. Entendo que cometi um erro irreparável e que, mesmo que eu seja capaz de esquecer, a menina estuprada naquele quarto de hotel em Berna jamais esquecerá. Tento o perdão de Nossa Senhora, de quem virei devoto, tento ser um homem melhor, tento ajudar a construir um mundo no qual minhas filhas jamais passem por qualquer coisa parecida".

Mas Cuca não faz isso - e não faz muito porque está protegido pelo pacto da masculinidade. Segue sendo afagado, paparicado, chamado de gentleman, de um cara simpático, decente e bacana.

Vejam: não estamos pedindo a cabeça de Cuca, não estamos sugerindo olho por olho nem dente por dente, não buscamos cancelar, odiar, esmigalhar. Estamos reconhecendo suas qualidades como treinador e líder de um time de futebol. Não estamos questionando sequer o fato de ele ser o melhor técnico do Brasil.

Não estamos sugerindo que nossos colegas cuspam em sua cara, virem o rosto quando ele falar, parem de elogiá-lo como treinador. Estamos apenas pedindo solidariedade nessa luta por sobrevivência e dignidade.

Cuca seguirá sendo um treinador excepcional. Sua carreira é longa, ele é jovem e brilhante em sua profissão. Vai conquistar títulos e glórias. Nada vai alterar essa realidade, e nós nem queremos com esse desabafo sugerir que buscamos o seu cancelamento. Não há diálogo possível via linchamentos virtuais, reais ou de quaisquer outros tipos.

Nós estamos aqui para chamar a atenção de vocês para o que enfrentamos todos os dias nesse mundo - e o jornalismo reflete com perfeição as violências dessa sociedade machista e misógina que tanto nos fere.

Estamos aqui para contar a vocês como o universo esportivo funciona, coisa que até hoje pouco fizemos porque não tínhamos espaço no futebol.

Estamos aqui para dizer que nossos corpos são abusados todos os dias, todos os minutos, por todo tipo de homem - inclusive e especialmente aqueles que conhecemos e, muitas vezes, aqueles que achávamos serem nossos amigos.

Se todas nós resolvêssemos falar de nossos abusos, quantos de vocês se manteriam de pé?

Estamos aqui para que nunca mais nenhuma outra menina, nenhuma outra mulher, seja abusada, assediada, estuprada. Para que nem a gente, nem nossas amigas, nem as filhas de Cuca precisem passar por isso.

Estamos aqui para ensinar que o foco de atenção somos nós e não o abusador. Esse não é um texto sobre Cuca. É um texto sobre como vocês podem entender o que nós passamos. Trata-se de um apelo para salvar as nossas vidas. Trata-se de compreender como nós nos sentimos. Como nós estamos sobrevivendo a tanta violência.

O foco dessa história é a nossa dor. Seria muito importante que vocês entendessem essa parte e não se apressassem em sair correndo para defender o que é indefensável.

Estamos aqui para lutar até que, algum dia um homem finalmente tenha a coragem de dar um passo a frente, confessar e se desculpar de forma corajosa, honesta, verdadeira.

Viemos avisar que estamos numa guerra e que o inimigo são nossos corpos e nossas dignidades. E não uso a palavra "guerra" hiperbolicamente.

Os números de corpos femininos violados, dilacerados e assassinados no Brasil são números de uma guerra.

Vejam: 81% das mulheres já passaram por algum tipo de violência durante deslocamentos pela cidade. A cada dez minuto, uma mulher é estuprada. Trinta mulheres sofrem agressão física por hora. Quase 80% já foram assediadas no trabalho. Eu poderia seguir listando, só que esse texto viraria um livro.

É uma guerra, e na guerra só existem dois lados possíveis para se estar.

Mas esqueçam as estatísticas. Números nem sempre comovem.

Façam um exercício de ousadia: perguntem às mulheres de suas vidas se elas já foram abusadas, assediadas, estupradas. Tenho certeza de que as respostas delas os deixarão perturbados.

Depois, se ainda tiverem coragem, perguntem com quantos anos sofreram o primeiro deles. O meu foi com 11.

Um corpo masculino está para nós mulheres como um corpo branco está para as pessoas negras. É um corpo que, de cara, carrega poder, opressão, violência. Um corpo que, mesmo antes de dizer qualquer coisa, já comunicou muitas. É preciso saber disso e, a partir dessa consciência, pisar a vida com cuidado, responsabilidade e empatia.

Pois é. "Nem todo homem", "nem todo branco" etc etc etc. Mas todo homem se beneficia da estrutura machista e toda pessoa branca se beneficia da estrutura racista. O que faremos a respeito? Calar? Compactuar com os nossos?

É preciso também parar de achar que o estuprador é o corpo de um homem negro que nos pega na calada da noite numa esquina vazia. Estupradores, abusadores e assediadores são nossos amigos, conhecidos, maridos, pais, irmãos, primos, cunhados, líderes espirituais, chefes, colegas de trabalho.

Mas escrotizar mulher é a coisa mais fácil do mundo. Não pega nada.

Há pouco tempo o Esporte Espetacular fez o certo e contou essa história de condenação de Cuca por envolvimento no estupro de uma menor. Dali a uns dias Cuca estava sentado no Seleção SporTV e em outros programas sendo devidamente lambido por nossos colegas de trabalho. É assim que o pacto da masculinidade opera.

O machismo e a misoginia dependem desse pacto para existir. Colegas que paparicam um homem condenado por envolvimento em estupro estão dizendo que esses acontecimentos são do jogo, que não é assim tão grave, que nós somos as chatas problematizadoras, que devíamos era parar de encher o saco. O recado é esse.

O caso de Cuca seria uma grande oportunidade para que esse jogo começasse a ser virado.

Cuca poderia se redimir historicamente sendo esse cara. Poderia deixar de ser nosso vilão e virar parceiro de luta. Nossos colegas de trabalho poderiam ser esses caras.

Mas Cuca se recusa, nossos colegas se recusam, e o episódio virou apenas mais um exemplo de como participar de qualquer ato que assedie, abuse e estupre mulheres não pega nada em nossa sociedade.

Dali a um tempo você pode perfeitamente ser o melhor treinador do Brasil, ser celebrado e reverenciado, e quem ousar relembrar do episódio do estupro é que passa a ser alvo de críticas.

Eu dedico esse texto às minhas amigas e colegas do jornalismo esportivo.

Dedico esse texto às mulheres que, todos os dias, precisam olhar nos olhos de um abusador e testemunhar ele ser afagado e paparicado por outros machos sem berrar, sem correr, sem abandonar o trabalho porque no fundo, maior que a dor, existe a consciência de que a luta está só no começo - e que resistir é re-existir.

"A recordação da felicidade já não é felicidade. A recordação da dor ainda é dor" (Lord Byron)