Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Futebol, fome, miséria e os escombros de um país terminado

Colunista do UOL

16/11/2021 17h09

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Flanando pelo Twitter vi a imagem de um menino de uns 9 anos, torcedor do Sport, indo ao estádio pela primeira vez e chorando de emoção nas arquibancadas da Ilha do Retiro. Logo depois, o menino foi surpreendido pelo encontro com um de seus ídolos, Lucas Arcanjo, e chorou ainda mais fundo. Se você está lendo esse texto você sabe exatamente o que sentiu o garotinho torcedor do Sport porque um dia você foi igual a ele. Eu fui.

Essa sensação me levou a uma outra, que é a notícia de que apenas 26% das nossas crianças estão fazendo as três refeições mínimas todos os dias. Quase 80% de nossas crianças, portanto, vive em situação de insegurança alimentar. Estamos falando de crianças entre 2 e 9 anos.

Esses são dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde, obtidos pela GloboNews por meio da Lei de Acesso à Informação.

Em 2015, segundo a mesma matéria, eram 76% as crianças que faziam as três principais refeições ao dia. Em 2016, a porcentagem caiu para 42%. Em 2017, passou para 46% e, em 2018, subiu para 62%. Já em 2019, desceu para 28%. No ano passado, alcançou o patamar mais baixo nestes últimos seis anos: 21%.

Em outra matéria absurdamente triste a gente fica sabendo que, em salas de aula, as crianças estão desmaiando de fome.

Se esse dado não causa reações físicas em você, se não deixa você transtornado, se não é capaz de gerar um tipo de indignação que alcança lugares muito fundos, então alguma coisa fundamental em você talvez tenha morrido.

Um país que não oferece segurança alimentar a suas crianças é um país que acabou. Um país em que crianças morrem de fome sendo ele uma das maiores economias do mundo é um país de miseráveis morais, de políticos inumanos, de mega-empresários delinquentes que se unem numa dança macabra em torno de políticas perversas. Um país no qual o lucro dos bancos privados segue escalonando recordes insanos e que é incapaz de alimentar suas crianças talvez nem deva mais ser chamado de país, mas de purgatório.

Nosso futebol não existe sem torcida. Nenhum futebol existe sem torcida. Um time não é nada sem nossa paixão, sem nossa entrega, sem nossa dedicação. Não é dinheiro que faz um time; é torcida.

Como o futebol pode passar longe de se manifestar diante de um dado como esse? Como o futebol pode achar que vai existir sem seus torcedores infantis? Sem a inocência e a dignidade das crianças? Que tipo de instituição aceita calada a morte de seu bem maior?

Hoje o futebol devia parar.