Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Milly: Cresci obcecada com os gols que Pelé não fez
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Uma de minhas primeiras memórias de vida me leva de volta ao Rio dos anos 70. Ela envolve dois homens: meu pai e Pelé. Nela, eu tenho 3 anos e estou em frente a um aparelho de TV vendo Pelé, com a camisa do Brasil, tocar a bola de lado para ninguém. Ou para onde parecia não haver ninguém. Meu pai me chamou a atenção para o lance. "Ele toca sem olhar", deve ter me dito. Em segundos, aquele espaço que antes estava vazio e que tinha sido ocupado por uma bola solitária é preenchido por Carlos Alberto Torres que, num chute cheio de poesia e força, coloca a bola na rede. Foi, até hoje, o gol mais bonito que já vi. Todo o lance é memorável, desde a zaga, verdade. Mas o toque de Pelé, que vira apenas o pé e mantém o corpo apontando para frente, é feito das coisas mais sublimes da vida.
O outro gol não feito é o chute da nossa intermediária em jogo contra a Tchecoslováquia na Copa de 70, quando a bola passa, por um capricho cruel, raspando a lateral da rede. Eu devo ter visto esse lance um milhão de vezes enquanto crescia. Não fazia sentido a bola não entrar; era como se o replay uma hora pudesse corrigir o destino. Demorou muito para que eu entendesse que a beleza estava justamente no fato da bola não ter entrado. Seria mesmo um desatino fazer a bola entrar porque muito rapidamente perceberíamos que Pelé não era humano e essa constatação nos afastaria dele. Foi de bom tom para que continuássemos achando que a perfeição não existe.
E o terceiro lance é o drible da vaca sem bola aplicado no goleiro uruguaio Mazurkiewicz também durante jogo da Copa de 70. Esse é o mais misterioso dos lances do futebol e, portanto, um dos mais misteriosos da vida. Quem desviou a bola que ia certeira para o gol? Jamais saberemos, ou saberemos quando já não pudermos mais contar o que houve. Mas a poesia, o sublime, o sagrado está no drible, na inteligência superior da malandragem aceitável, da única enganação que podemos aplaudir, desse fundamento tão brasileiro, tão corporal, tão encantado.
Hoje entendo que a bola não entrou para que Deus pudesse nos manter acreditando que somos falíveis. E entendo também que parte da eternidade desses lances está justamente no erro, no equívoco, no que não deu certo. É por causa deles que podemos perceber o atleta Pelé como parte humano também, como integrante do que somos, como feito de algumas das mesmas substâncias das quais somos feitos e feitas. E essa associação nos ajuda a seguir, a querer mais, a buscar o impossível.
Pelé faz 81 anos nesse 23 de outubro. Nosso futebol não seria o mesmo sem ele, nossa auto-estima não seria a mesma sem ele e eu, certamente, não seria a torcedora que sou sem ele. Parabéns, Rei.
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