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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Quem ganha quando um clube vira empresa?

Venda pode fazer do Newcastle o time mais rico do futebol mundial - Reprodução
Venda pode fazer do Newcastle o time mais rico do futebol mundial Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

13/10/2021 10h37

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A recente aquisição do Newcastle por um fundo de investimento da Arábia Saudita administrado por um magnata bilionário acende outra vez a questão do clube empresa. Claro que o Newcastle já era propriedade de um outro bilionário, um empresário inglês, mas agora que o time pode comprar todos os jogadores que quiser e montar uma seleção intergaláctica o debate outra vez entra em campo.

Quem ganha com essa lógica empresarial que infecta o futebol em todas as suas camadas?

Comecemos com quem não ganha: não ganhamos eu ou você. Não ganha quem acha que o futebol não cabe em uma planilha. Não ganha quem acredita que um clube tem uma espécie de alma, é quase sujeito, tem cultura e filosofia próprias. Não ganha quem acha que o futebol tem função social. Não ganha quem se desespera com a desigualdade crescente no mundo e não ganha quem não gostaria de ver uma pequenina elite surgir no futebol e deixar a maioria dos times como parte de um bolo de empobrecidos cuja única função é entrar nos campeonatos para deixar os bilionários brilharem e empilharem troféus. Não ganha quem acha que esse tipo de negociação se aproxima mais da lavagem de dinheiro do que da paixão pelo jogo.

Essa lógica empresarial que acaba fazendo com que acreditemos que devemos seguir nossas vidas como empresários de nós mesmos (alô uberistas) porque liberdade é isso, ser dono do seu nariz, não ter patrão, trabalhar exaustivamente já que quem muito trabalha tudo alcança é o que está nos matando.

As pessoas mais esforçadas que conheço nasceram pobres e vão morrer miseráveis. Essas histórias de ficção que nos são contadas, a do trabalho meritocrático - servem apenas a um pequeno grupo de homens poderosos que seguem enriquecendo com 0 trabalho da maioria da população.

Não estamos aqui para empreender, para negociar, para tratar tudo como mercadoria. E ainda que essa praga da lógica econômica esteja em todas as camadas de nossas vidas existe a arte e a cultura para nos fazer confiar numa virada de jogo - e o futebol é arte e é cultura.

Quando o futebol é tomado por bilionários que usam o esporte para lavar seus bilhões conquistados com a depredação do planeta e a exploração de seres humanos então estamos perto do fim. Quem ganha então quando um clube vira empresa? Os mesmos de sempre. Aqueles que há 500 anos ganham.

O Brasil está a dois minutos dessa realidade. É já que um bilionário qualquer aporta por aqui - protegido por novas leis do esporte que estão para ser aprovadas - e vira proprietário do seu clube de coração. O Bragantino já é isso: menos que um time, um projeto econômico.

Parece sedutor, certo? Poder comprar de Neymar a Mbappé, de Arrascaeta a Gabigol, poder trazer muitos craques e assim ganhar muitos títulos. Mas eu não vejo sedução em fazer meu time virar empresa. O futebol em que acredito não cabe em uma planilha e não é feito apenas de conquistas. Eu não amo o Corinthians por ele ganhar títulos. São outros afetos que são mobilizados por minha paixão. São outras dimensões de amor, de conexão e de identificação que nos fazem morrer de amor por uma camisa.

Tirar a alma de um time, entregá-lo a um bilionário que acumula dinheiro de formas imorais e antiéticas (todos os bilionários se encaixam nessa descrição) é equivalente a enterrar esse time, tirá-lo de sua torcida, afastá-lo de qualquer forma de construção de subjetividades, ceder a uma lógica perversa, covarde e vazia.