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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly Lacombe: Quem fica rico com o futebol?

Formado no Corinthians, Willian (centro) comemora ao marcar gol pelo Arsenal - ANDY RAIN/Pool via REUTERS
Formado no Corinthians, Willian (centro) comemora ao marcar gol pelo Arsenal Imagem: ANDY RAIN/Pool via REUTERS

Colunista do UOL

25/08/2021 04h00

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A notícia de que o Corinthians está interessado no meia Willian me causou uma estranha sensação. Se por um lado me alegro com o sonho de ver esse jogador voltar a vestir a camisa do meu time, por outro me pego pensando quem ganha e quem perde quando um jovem craque é vendido antes mesmo de poder fazer história no clube que o formou. Willian chegou ao Corinthians com 10 anos de idade e durante muito tempo foi considerado uma das grandes promessas da base. Aportou no profissional tão rapidamente quanto saiu, vendido para o Shakhtar em 2007.

Quantos craques você viu seu time de coração formar e vender antes mesmo de conseguir escrever uma história com a camisa que o revelou? É assim a vida, dizem os céticos. Como se o mercado da bola seguisse uma espécie de lógica "lei da natureza", como se houvesse apenas a alternativa de nos conformarmos com a realidade que é o futebol ter virado um balcão de negócios, como se o jogo fosse uma oportunidade de ascensão social a ser não apenas considerada, mas celebrada. Mais uma para a conta da meritocracia, do esforço individual, do reconhecimento do talento.

A ideia de que o futebol é uma opção profissional razoável para ascensão social é mais uma romantização liberal. O recrutamento de jovens com foco nas camadas populares, que passam a investir bastante tempo de suas vidas em treinamentos para se transformarem em jogadores profissionais, está, se formos nos basear em dados, alienando mais do que formando. Trata-se de um mercado altamente competitivo em que a maioria dos recrutados acabará frustrada, insatisfeita, melancolizada.

Mesmo aqueles que conseguem chegar ao profissional não terão seu futuro garantido. E isso apenas se levarmos em conta o futebol masculino; a realidade do feminino é ainda mais trágica.

Pesquisa divulgada pela plataforma Cupomvalido.com.br, que reuniu dados da CBF, Statista e EY (antiga Ernst & Young), mostra que mais da metade dos atletas que atuam no Brasil recebe um salário mínimo. E aqui estamos falando da parcela de jovens que conseguiu se profissionalizar. O levantamento indica que apenas 12% tem remuneração superior a R$ 5.001. Mais: 55% dos boleiros recebem a remuneração de R$ 1.100, não considerando os direitos de imagem. Entre os jogadores que faturam até R$ 5.000, o percentual cai para 33%.

De acordo com o estudo, o Brasil possui 7.020 clubes registrados, sendo que 874 agremiações são profissionais ativas. A região Sudeste é a que aloja a maior parte desses times (39%) e a que paga melhor também (média de R$ 15 mil). Já os vencimentos mais baixos estão concentrados no Nordeste (em torno de R$ 1.000). O país possui mais de 360 mil atletas registrados, sendo que 25% são profissionais.

O estudo revela que o futebol brasileiro movimenta alguma coisa da ordem de R$ 52 bilhões, e que 80% do valor total dos salários está concentrada em apenas 7% dos atletas.

Por que movimenta-se tanto? Quem ganha com essa compra e venda desenfreada?

Um estudo intitulado "Jogadores de futebol no Brasil: mercado, formação de atletas e escola", de autoria de Antonio Jorge Gonçalves Soares, Leonardo Bernardes Silva de Melo, Felipe Rodrigues da Costa, Tiago Lisboa Bartholo e Jorge Olímpio Bento, mostra que a formação no nosso futebol pode começar a partir dos 12 anos, "muitas vezes em regime de albergamento, e tem uma duração aproximada entre cinco e seis mil horas de trabalho voltado para preparo físico e para o domínio de técnicas corporais e psicológicas. A carreira exige extenuante trabalho corporal para aqueles que pretendem entrar nesse afunilado mercado. Todavia, é nesse mesmo período da vida que a Educação Básica, em tese, exige do jovem dedicação na incorporação de capital cultural para que possa ser uma das chaves de acesso ao mercado de trabalho. Em outras palavras, estamos falando da possibilidade de reconversão do capital cultural, em seus diferentes estados, em capital econômico".

Mas será mesmo que os clubes dão a mesma importância para o desenvolvimento físico, técnico e tático que dão para o desenvolvimento psicológico, para que os poucos que conseguirem furar a bolha estejam preparados para as mudanças repentinas de situação social?

Esse é um dos aspectos que mais preocupa o ex-jogador e hoje comentarista Walter Casagrande, da rede Globo: "Esses jovens estão preparados para a frustração ou para o sucesso?", questiona Casão sabendo que os dois caminhos oferecem armadilhas, desafios, transtornos.

No caso do jovem que ficar pelo caminho, nada de muito significativo é oferecido e ele terá de correr atrás de outra alternativa de vida. No caso do jovem que conseguir se profissionalizar, ser vendido, ganhar um salário decente, viver uma vida de luxos e virar celebridade ainda assim haverá dores de cabeça. O caminho até o topo é cheio de desvios, de interesses estranhos, de pessoas que certamente lucrarão com a carreira daquele jovem sem nem sequer se preocupar com o peso mental e moral que o sucesso trará.

Nas palavras do grande escritor Eduardo Galeano em correspondência com o enorme repórter Lucio de Castro da Agência Spotlight: "A obsessão universal pela vida privada dos que têm êxito, e acima de tudo pelos desportistas vencedores que vêm da miséria e que tinham nascido estatisticamente condenados ao fracasso. Exige-se deles que sejam freiras de convento, consagrados ao serviço dos demais e com rigorosa proibição do prazer e da liberdade. Os puritanos que os vigiam e os condenam são, em geral, medíocres cujo desafio mais audacioso, sua mais perigosa proeza, consiste em cruzar a rua com luz vermelha, alguma vez na vida, e isso tem muito a ver com a inveja que provoca o êxito alheio. Tem muito a ver com a demonização dos pobres que não renegam sua mais profunda identidade, por mais exitosos que sejam. E muito tem a ver, também, com a humana necessidade de criar ídolos e o inconfessável desejo de que os ídolos se derrube".

Esse cenário perverso começou a se formar com a criação da Lei Pelé, em 1998, que instituiu novas regras para transações envolvendo jogadores.

"Essa mudança criou facilidades e benefícios para todos os atores envolvidos nas transações. Em outras palavras, há ganhos financeiros para todas as partes: jogadores, empresários, clubes, patrocinadores, entre outros. O argumento romântico que afirma que os jogadores no passado tinham "amor à camisa" ou ficavam anos no mesmo clube por "amor ao clube" deve ser analisado a partir das novas regras e demandas do mercado.

O empresário e o agente passaram a ser figuras centrais no mercado da bola. Criou-se uma verdadeira indústria de formação de jogadores com a finalidade de exportação, e o negócio futebol passou a ter peso considerável na exportação brasileira (em 2006, segundo o mesmo estudo, esse número estava na casa de US$ 6 bilhões).

Foi assim que assistimos passivamente nosso futebol se transformar em um balcão de negócios convencidos de que esse era o caminho do progresso, do desenvolvimento, da evolução. Disseram que seria dessa forma que nosso futebol melhoraria, mais ou menos no estilo "pagando pela bagagem o preço da passagem vai diminuir."

O liberalismo tem essa peculiaridade, entre outras: transforma tudo em mercadoria para deleite de poucos e sufocamento de muitos convencendo os "muitos" de que esse é o caminho do progresso e que, um dia, o sol brilhará para eles também: basta não desistir e se esforçar.