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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Começa a disputa política por Rebeca e suas conquistas

01.ago.2021 - Rebeca Andrade vence medalha de ouro na ginástica  - Loic Venance/AFP
01.ago.2021 - Rebeca Andrade vence medalha de ouro na ginástica Imagem: Loic Venance/AFP

Colunista do UOL

01/08/2021 14h53

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Rebeca Andrade tinha saltado para a história há poucos minutos quando políticos como João Doria e Eduardo Leite correram para as redes sociais para manifestar admiração pela conquista da atleta. É preciso que a gente encare essas atitudes com todos os limites éticos que elas pedem, a despeito de termos que levar em consideração a honestidade delas (sim, Doria e Leite podem até estar sendo sinceros).

A primeira pergunta que me ocorre fazer é: é melhor a manifestação aberta de orgulho de políticos que apoiam pautas econômicas que servem para dizimar todas as mães solo das periferias, como a mãe de Rebeca, do que o silêncio do presidente que arquitetou um genocídio?

Eu realmente não sei dizer.

Até o momento em que postei esse texto, às três horas da tarde do domingo, o homem que exerce o poder de presidente da república não tinha se manifestado sobre o feito histórico de Rebeca Andrade.

Ocupado em testar nas ruas mais uma de suas pauta-caos - a do voto impresso auditável - e assim justificar antecipadamente uma futura derrota nas urnas em 2022, Bolsonaro cumpria um silêncio que é bastante coerente em relação ao que pensa a respeito de mulheres (ele já disse que algumas merecem ser estupradas) e de pessoas negras (ele já comparou negro a gado).

Por outro lado, Doria e Leite - nos quais eu alegremente votaria caso houvesse a necessidade de derrotar Bolsonaro em 2022 via um desses nomes - fizeram o discurso que se espera de um político, disputando a conquista de Rebeca, usando as palavras certas e a emoção esperada diante do feito.

Mas como agem políticos como eles no dia a dia? Apoiando reformas que servem para dilacerar pessoas pobres, pessoas negras, pessoas marginalizadas, pessoas em situação de vulnerabilidade, trabalhadores e trabalhadoras em geral.

Não é coerente elogiar Rebeca e, por exemplo, votar a favor da flexibilização das leis trabalhistas que levarão à exaustão o trabalhador e a trabalhadora de baixa renda. Não é coerente elogiar Rebeca e apoiar a reforma da previdência nos moldes em que ela se apresenta porque a trabalhadora e o trabalhador de baixa renda terão que trabalhar até morrerem. Não é coerente elogiar Rebeca e lutar pela privatização de todas as coisas, querer inundar de lógica empresarial instituições de Ensino, de cultura, de esporte.

Não é coerente elogiar Rebeca e falar em ficções como meritocracia. Discursos de "basta se esforçar" não têm nenhuma base de dados num país que mata e prende seus jovens às centenas de milhares antes que eles possam pensar em fazer alguma coisa com suas vidas. Para cada Rebeca que chegou ao pódio existem milhares de jovens que nem ao ponto de ônibus conseguiram chegar porque foram assassinadas e assassinados pela polícia ou pela milícia.

Não é coerente bater palma para a coreografia embalada no funk "Baile de Favela" e criminalizar essa forma de arte, de cultura e de música aplaudindo cada operação policial que invade as periferias e as favelas para interromper - na porrada e na bala - momentos de diversão, como aconteceu em 2020 quando nove jovens foram pisoteados até a morte durante uma arbitraria ação da polícia em um - vejam só - baile na favela.

Por tudo isso eu realmente não sei se manifestações como as de Doria e Leite são mais éticas do que o silêncio de Bolsonaro. Existe uma verdade na forma de agir do atual presidente que, se comparada a políticos progressistas que apoiam pautas genocidas, fica menos vulgar e menos vexatória.

Rebeca Andrade é uma exceção e não era para ser assim. A dimensão de tragédia de nossas vidas deveria ficar no âmbito da finitude e das inevitáveis perdas pelas quais temos que passar durante a experiência que é viver. Nenhuma tragédia deveria estar inscrita em injustiças sociais, nenhum sacrifício deveria envolver ter que superar, todos os dias, a exploração, a opressão e a repressão para que sua filha mantenha-se viva para ser quem ela quiser ser.