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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para alegria de muitos e tristeza de poucos, o clube-empresa vem aí

Chelsea celebra o título da Champions League após vencer o City - Alex Caparros - UEFA/UEFA via Getty Images
Chelsea celebra o título da Champions League após vencer o City Imagem: Alex Caparros - UEFA/UEFA via Getty Images

Colunista do UOL

16/07/2021 19h27

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A lógica empresarial, essa que diz que tudo e todos devem ser tratados como se fossem empresas, que tudo e todos devem estar submetidos a uma ordem de custo-benefício, que o dinheiro e o lucro são o destino de qualquer iniciativa decente, chega ao futebol. O projeto de lei 5.516/2019, que cria a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), dando aos clubes novas possibilidades de obtenção de recursos, foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora segue para a sanção do homem que ocupa a presidência dessa bagunça chamada Brasil (o PL já tinha passado no Senado). Foram 429 votos favoráveis e apenas sete contra: uma goleada, portanto.

Eu não gosto da ideia do futebol pensado como empresa. Não gosto da ideia de que a lógica empresarial nos invadiu da forma como invadiu, ocupando todas as instâncias das nossas vidas, desde a forma como pensamos a respeito de nós mesmos, até a maneira como construímos nossas subjetividades, tratamos nossos desejos e profissões.

O futebol é lugar de construção e circulação de afetos. Times não existem para produzirem mercadorias, para negociar mercadorias, para ter sócios-torcedores, para dar lucro, para enriquecer empresários e dirigentes. Time é lugar de formação de subjetividades, é escola que ensina a gente a sonhar, sofrer, vencer, perder, se relacionar. Nenhuma empresa é capaz de cumprir esse papel nas mais variadas dimensões de nossas vidas.

Com a aprovação do projeto de lei fica mais perto o dia em que um bilionário árabe vai chegar por aqui com seus bilhões e passar a "ser dono" de alguns de nossos times. Certamente existem aqueles que não veem a hora disso acontecer, mas eu não sou uma dessas pessoas. Os que sonham com esse dia são aqueles que conseguem enxergar uma alma em times como Chelsea e Manchester City. Eu não consigo, por mais que tente.

O que vejo quando olho para esses dois gigantes e bons exemplos de clubes absolutamente infectados pela lógica empresarial são equipes competitivas, praticamente seleções, que entram em campo, protagonizam boas partidas, oferecem entretenimento, mas nunca terão uma alma.

Diante desses dois, o São Cristóvão, a Ferroviária, o Fluminense de Feira de Santana, o Bangu e o Linense tem mais alma. "Então fica com o seu Linense que eu prefiro que meu time vire um Chelsea", dirão as multidões, como se houvesse apenas a escolha e entre uma espécie de poesia-raiz futebolística que jamais será competitiva e um clube que tem cara de empresa, dinheiro para formar seleções e entra em cena para ganhar tudo.

Aqueles que argumentam a favor das SAF dizem que é esse o caminho para que o futebol brasileiro se desenvolva, se civilize. Não custa lembrar que todo processo de civilização é também um processo de barbárie, como tão bem ensinou o filósofo alemão Walter Benjamin. Os clube-empresa terão holdings como sócios, essas que muitas vezes têm sede em paraísos fiscais. Mas, dizem os defensores, as SAF vão dar transparência às administrações, uma espécie de lógica "cobrando pela bagagem as companhias aéreas conseguirão baixar o preço das passagens", coisa que nunca aconteceu. Se virar empresa fosse credencial para transparência, acho que todos concordarão, não estaríamos nessa situação.

Há outras alternativas para fazer nosso futebol ficar melhor e ter administrações menos indecentes, certamente, mas nossa imaginação está bloqueada pela lógica empresarial que, querem fazer a gente acreditar, é a coisa mais natural do mundo, a evolução das evoluções, uma lei da natureza praticamente. Eu acho uma pena.