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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gerson precisava sair?

Gerson se despede de jogadores e funcionários do Flamengo - Alexandre Vidal / Flamengo
Gerson se despede de jogadores e funcionários do Flamengo Imagem: Alexandre Vidal / Flamengo

Colunista do UOL

24/06/2021 18h52

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Sim, dirão os que justificam a saída com base em ajustes orçamentários e cumprimento de metas. Entendo. É o que nos dizem todos os dias a respeito da necessidade de praticarmos a austeridade econômica a nível nacional. E também a nível pessoal. Austeridade econômica virou a medida de todas as coisas, um decreto moral mais do que econômico. Um governo não gasta mais do que ganha, repetem para convencer a gente de que uma nação precisa ser administrada como a sua e a minha casa. Se soa ridículo é porque é ridículo.

Mas é proibido falar mal das razões neoliberais. Elas são leis da natureza, assim como o nascer e o por do sol, e o conhecimento dessa maravilha chamada liberalismo pertence a poucos homens que se parecem muito com Paulo Guedes: brancos, ricos, arrogantes e capazes de dizer coisas que ou não entendemos do que estão falando ou - se entendemos - é porque eles estão nos ofendendo.

Num mundo dentro do qual tudo e todos são administrados como empresas, onde o mantra é o de que somos proprietários de nós mesmos e a lógica absoluta é a lógica da ordem empresarial, faz todo o sentido argumentar que a venda de Gerson, diante da situação orçamentária do clube, era mandatória, inescapável, irreconciliável. Basta ver o balanço do clube, que é público, ora bolas. Vejam o balanço e tudo fica evidente: Gerson precisava sair. Uma pena, mas precisava.

Eu gostaria de propor uma reflexão que antecede a sentença da frase "cumprimento de metas orçamentárias". Quem faz essas metas? São metas que visam fazer com que o clube seja financeiramente viável, claro. Mas sob quais modelos? O que queremos do time que amamos? Que ele seja o campeão do ajuste de metas orçamentárias, o vencedor do troféu da austeridade, o que foi melhor gerido e administrado. É isso o que queremos?

Será que não existem outros modelos para que um clube não seja tratado como uma empresa, com o rigor da austeridade que, querem nos convencer, separa o homem moral do homem imoral?

Eu desconfio fortemente da atual inundação de notícias sobre o rombo dos clubes justamente na véspera em que a lei para transformar nossos times em empresa está para ser votada. É uma regra da privatização (alô, FHC): sucatear para vender. Todos sabem disso.

Quanto tempo até um bilionário do oriente médio comprar um Flamengo, um Corinthians, um Grêmio, um Fortaleza? O torcedor e a torcedora, devidamente internalizados com a ideia de que o time está numa roubada financeira e que precisa de ajuda, vão apoiar a venda e até festejar.

O Bragantino já está no caminho. E vejam só: é um bom time. Joga decente e entrosadamente. Tem um uniforme bonito e elegante. Tudo no modelo europeu. Não temos mais o nosso modelo. Apenas repetimos e copiamos como se o que eles fazem por lá fosse a única forma de o futebol conseguir existir. Como somos um enorme produtor de craques de bola, nos dedicamos a formar craques para alimentar o mercado de lá - como fazemos com tudo há 500 anos.

O neoliberalismo é mais do que um modelo econômico; é uma forma de vida. O cálculo do custo benefício está internalizado em todos nós. Vida é performance, dizem. Mas vida não é performance. Vida é a maneira como a gente se afeta uns aos outros. E nosso clube de coração tem uma importante função na nossa existência: ele mobiliza paixões, pertencimentos, entrega, delírios, identidade, reconhecimento, alegrias e tristezas. Um clube é tudo menos uma empresa. Mas o argumento de que temos que tudo precisa seguir uma lógica empresarial já está internalizado e tem sido muito difícil lutar contra ele. Trata-se de um modelo de racionalidade econômica que determina viver ou morrer socialmente. Virou verdade absoluta. Uma lei da natureza.

Uma pena que Gerson tenha que ir emprestar seu talento e elegância para os gringos. Foi um dos grandes que vi jogar em nossos campos.